O Estado de S. Paulo.
O que se tem é uma reforma confusa, sem ter quem a lidere e com alunos prejudicados por dois anos de escolas fechadas
Levantamento recente da Secretaria de
Educação de São Paulo mostra o impacto da pandemia no ensino médio do Estado,
que já não vinha bem. Em Língua Portuguesa, em 2019, os alunos que terminavam o
ensino médio já estavam, em média, 3,83 anos atrasados em termos do que haviam
aprendido, ou seja, sabiam menos do que o esperado no 9.º ano do ensino
fundamental. Em 2021, este atraso havia aumentado para 4,24 anos. Em
Matemática, o atraso, que era de 5,14 anos, aumentou para 6,53 anos, ou seja,
tinham o nível próximo ao esperado no 5.º ano. É provável que, no resto do
País, o impacto tenha sido maior.
É assim que estes estudantes estão entrando, em 2022, no novo ensino médio, estabelecido em 2017. Pela lei, os estudantes que entram no ensino médio como um caminho para o ensino superior deveriam escolher as áreas de estudo de sua preferência; para a maioria, sobretudo da rede pública, que não irá além do nível médio, seria possível obter uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho.
E, para todos, haveria mais espaço para
fortalecer as competências básicas gerais, como os conhecimentos essenciais de
linguagem e raciocínio matemático. A intenção foi boa, mas a lei ficou confusa,
e caberia ao Ministério da Educação liderar a transição para o novo sistema,
resolvendo as ambiguidades e apoiando as redes neste processo. O ministério se
omitiu, e cada Estado está tratando de fazer as mudanças como pode.
A omissão do governo federal tem que ver
com a incompetência e hostilidade do governo Bolsonaro em relação aos temas de
ciência, cultura e educação, mas também com uma forte resistência do
establishment educacional aos dois objetivos da reforma. Esta resistência se
deu e ainda se dá em dois níveis, o das ideologias e concepções e o das
dificuldades práticas que a reforma acarreta, que me parece o mais importante.
A oposição à diferenciação de trajetórias
se manifesta muitas vezes na forma de defesa do direito à educação, que seria
afetado se o estudante tivesse um currículo mais direcionado. Ela veio, também,
associada ao temor de que a flexibilização dos currículos afetaria a rotina e o
emprego de professores de filosofia, sociologia, educação física, religião e
tantos outros que têm asseguradas suas horas de ensino nos currículos
tradicionais. O resultado foi aumentar, na lei, o tamanho e os conteúdos da
parte de formação comum do ensino médio, e adotar, para os diferentes
itinerários de formação, uma classificação formal e arbitrária de áreas de
conhecimento (linguagem, Matemática, ciências da natureza, ciências sociais),
ao invés de temas mais próximos das áreas de formação profissional (tecnologia
e engenharia, ciências da saúde, profissões sociais, humanidades), como se dá
no resto do mundo.
Nem tudo estava perdido, porque é o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) que define o que fazem, na prática, as escolas
do ensino médio. Pensando nisso, o Conselho Nacional de Educação (CNE)
desenvolveu uma proposta para um novo Enem, que consistiria em duas partes, a
primeira de competências gerais, semelhante ao Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes (Pisa), e a segunda com opções nas quatro áreas de
formação profissional.
Mas o Ministério da Educação, com o apoio
de associações como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
(Andifes), acabou adotando um projeto diferente. São, também, duas partes, a
primeira juntando todo o conteúdo da parte geral e a segunda com quatro módulos
diferentes à escolha dos alunos, combinando as diferentes áreas formais de
conhecimento. É uma proposta confusa, carregada de linguagem pretensiosa
(“intervenção social”, “articulação de competências”, “interdisciplinaridade”,
etc.), tecnicamente duvidosa e que mal esconde a resistência à inovação.
O principal argumento ideológico contra a
reforma do ensino técnico é de que ele estaria subordinando a educação ao
mercado de trabalho (horror!), abandonando o ideal gramsciano de “politecnia”.
Esta reforma deveria ter sido acompanhada de uma política efetiva de
fortalecimento dos vínculos entre as redes estaduais e os sistemas de formação
profissional existentes, como os do sistema S e o sistema Paula Souza, em São
Paulo, e da implantação progressiva de um sistema nacional de certificações de competências
profissionais, em parceria com o setor produtivo, que pudesse dar rumos e
valorizar as carreiras vocacionais.
Além disso, deveria haver um esforço de
ampliação e qualificação de um sistema moderno de aprendizagem profissional e
do ensino superior de curta duração, que dariam continuidade à formação técnica
de nível médio. Ao invés disso, o que se viu foi uma preocupação em manter o
ensino técnico integrado ao currículo tradicional, como uma formação elitista
só possível para os poucos institutos tecnológicos federais que, na prática,
selecionam e preparam seus estudantes para as carreiras universitárias.
É este o apagão do ensino médio brasileiro
em 2022: uma reforma confusa, sem ter quem a lidere e com alunos prejudicados
por dois anos de escolas fechadas. Seria um bom tema para as campanhas
eleitorais, se os políticos realmente se interessassem por educação.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira
de Ciências
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