quinta-feira, 3 de março de 2022

Malu Gaspar: A diplomacia do zap

O Globo

Ao explicar o que ele mesmo chamou de posição de “neutralidade” em relação à guerra na Ucrânia, Jair Bolsonaro recorreu à dependência do setor agrícola em relação aos fertilizantes russos.

“Para nós, a questão do fertilizante é sagrada”, disse, na mesma entrevista em que considerou um “exagero” falar que o governo de Vladimir Putin está massacrando ucranianos.

Claro que não interessa a ninguém que o agronegócio brasileiro fique sem insumos. Menos fertilizantes levam a menor produtividade, maiores custos e, consequentemente, mais inflação.

Está evidente, porém, que essa não foi a única razão para o comportamento leniente de Bolsonaro em relação a Putin.

Desde o momento em que pisou na Rússia, ele demonstrou que seu cálculo tem mais a ver com as eleições de outubro que com a geopolítica mundial ou com a pujança da nossa agricultura.

Nenhum acordo relevante foi assinado em território russo e, que se saiba, nada de concreto foi discutido. Nem mesmo a reunião de produtores russos de fertilizantes com representantes da comitiva brasileira trouxe grande novidade. Só mesmo a conclusão óbvia de que os compatriotas de Putin estão muito a fim de vender para o Brasil.

O único saldo visível da viagem foi a foto em que Bolsonaro e Putin aparecem num sorridente aperto de mão. A menos que algo muito confidencial tenha sido discutido nas duas horas em que ficaram a sós, era só isso mesmo o que Bolsonaro queria.

Não é segredo que ele ficou mordido com o recente giro europeu de Lula e vinha buscando incluir em seu cardápio de campanha alguma demonstração de que não está isolado no panorama internacional.

Naquele momento, Putin foi o único líder de potência mundial disposto a recebê-lo, e Bolsonaro era o único chefe de Estado de um país relevante disposto a adular o autocrata russo em plena crise com a Ucrânia.

Do ponto de vista da política de relações públicas, a jogada russa já se converteu em tiro no pé assim que a guerra começou.

Ter ido a Moscou com uma conversa vaga sobre paz dias antes do ataque ou indica que Bolsonaro fez papel de bobo, ou então que, no fundo, não estava nem aí para a paz mundial. A confusão entre o que o presidente diz e o que o Itamaraty faz nas Nações Unidas também cai muito mal para quem se pretende um ator de peso no cenário global.

O aspecto econômico é mais um em que a postura de Bolsonaro se revela simplista e inócua. Com as sanções impostas aos bancos e o embargo à cadeia de transporte, os russos não conseguirão vender fertilizantes ao Brasil mesmo que queiram. O país terá de fazer novas articulações para tentar suprir a produção agrícola. E, dependendo do cenário, será obrigado a disputar produtos de grandes fornecedores, como o Canadá.

Com a oferta menor que a demanda, será necessário algum critério para decidir quem consegue os produtos primeiro. Dependendo de qual for esse critério, a vida do agronegócio brasileiro não ficará muito mais fácil do que está.

O curioso é que Bolsonaro, agora, já não parece mais tão preocupado. Enquanto a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, trabalhava para acelerar o Plano Nacional de Fertilizantes, que deveria ter sido lançado no final do ano passado, e anunciava sua ida ao Canadá para negociar o aumento do fornecimento, o presidente sugeria no Telegram que se liberasse a exploração de minas de potássio em reservas indígenas, como forma de obter mais matéria-prima.

No WhatsApp, espalhava teorias da conspiração desconexas para justificar o injustificável. “Se Bolsonaro não tivesse corrido para fazer aliança com Putin (fertilizantes, ...), nem eleições teríamos”, dizia um trecho da enigmática mensagem que enviou às suas listas de zap, como mostrou ontem o colunista Lauro Jardim.

“Os mesmos que desejam que o Presidente brasileiro tome uma posição firme no conflito Rússia x Ucrânia são aqueles que desejam tomar de nós a Amazônia.”

Não chega nem a ser surpresa que Bolsonaro esteja avacalhando a tradição da nossa diplomacia, assim como fez com todo o resto da capacidade instalada no governo, ou que não enxergue um palmo adiante do nariz no cenário econômico internacional.

É previsível que se ocupe mais com eleições e de suas narrativas caóticas que com trazer solução a nossos dilemas, em meio a uma crise planetária de grandes proporções. O problema para o próprio presidente é que, assim como o print da tela do celular, a História não se apaga, e as consequências de sua diplomacia do zap podem vir a ser perenes — tanto na economia quanto nas urnas.

 

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