Folha de S. Paulo
As ideias de Putin formam parte do
repertório da extrema direita no mundo
Ocupando uma tela inteira, o mapa mostra
bases de mísseis ao redor do imenso território russo, enquanto Vladimir Putin,
com um gesto de abraçar o vazio, descreve a situação de seu país, segundo ele
permanentemente ameaçado pelo Ocidente.
A cena é do segundo episódio do
documentário em quatro partes "Entrevistas com Putin",
do cineasta americano de esquerda Oliver Stone, lançado em 2017 e levado ao ar
no Brasil pela TVT (TV dos Trabalhadores).
Ela dá o tom da conversa de quase quatro horas, durante as quais o autocrata vai revelando, com precisão e perfeito controle da imagem que quer projetar, sua versão de uma Rússia altiva, conservadora e vítima da incompreensão, dos compromissos traídos e das ambições das potências ocidentais.
O tom é mais sereno, mas a mensagem é a
mesma do discurso da segunda-feira (21/2): querem usar a Ucrânia como trampolim
para invadir a Rússia, a fim de "destruir nossos valores tradicionais, impor-nos
seus falsos valores que nos destruiriam, destruiriam nosso povo por dentro,
atitudes que vêm impondo agressivamente em seus países, atitudes que levam
diretamente à degradação e à degeneração, pois são contrários à natureza
humana". Em suma, a Rússia é vítima da cobiça dos grandes.
As ideias de Putin sobre os valores e o
papel de seu país no mundo têm raízes na direita tradicionalista russa, como
observou João Pereira Coutinho na excelente coluna da terça (1º), nesta Folha.
Sua ascensão e duas décadas de poder se explicam pelo cataclismo econômico e
social que se seguiu ao colapso da União Soviética.
Mas o nacionalismo chauvinista, a
vitimização, a paranoia política e a rejeição aos chamados valores ocidentais
—respeito aos direitos humanos, à expressão da diversidade de comportamentos e,
especialmente, às regras da democracia representativa— formam o repertório
compartilhado pelo populismo no mundo.
Interpretada à luz das tradições e
conflitos de cada país, é moeda corrente no México de Lopez-Obrador; na Hungria
de Viktor Orban; na Venezuela de Nicolás Maduro; na Turquia de Recep Erdogan;
na Índia de Narendra Modi --e como foi nos EUA de Donald Trump. Serve ainda
para cercear a democracia e, no limite, instituir regimes autoritários nos
países em que a extrema direita comanda.
É razoável discutir a oportunidade e as
consequências para a paz da expansão da Otan às fronteiras da Rússia. Mas daí a
comprar a versão putiniana de que o país é vítima de uma agressão comandada
pelos EUA e se defende como pode— equivale a avizinhar os Urais da Sibéria. Uma
distância que a esquerda democrática não poderia ignorar.
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