Valor Econômico
Só o front interno da guerra sucessória
explicaria a troca no comando do Exército
Ao final dos oito minutos e 37 segundos que
durou sua declaração depois do encontro com o presidente brasileiro, quase o
dobro do que falou Jair Bolsonaro, Vladimir Putin encarregou-se de informar ao
público sobre o ineditismo da reunião que, naquele momento, se desenrolava
entre os chanceleres e os ministros da Defesa dos dois países. A inclusão do
ministro Walter Braga Netto e de sua contraparte russa Serguei Choigu na
reunião dos chanceleres Carlos França e Serguei Lavrov foi uma tentativa da
Rússia de vender armas para o Brasil às vésperas do ataque à Ucrânia.
Não deu em nada, mas expôs a esquizofrenia da política externa de um presidente cuja diplomacia, duas semanas depois, votaria pela condenação da Rússia na Assembleia Geral da ONU, descolando-se dos outros três parceiros do Brics (China, Índia e África do Sul), que se abstiveram.
O que o Brasil ganhou com a exposição pública
dessa esquizofrenia? Não se sabe se o vereador Carlos Bolsonaro e sua turma
aprenderam alguma coisa em Moscou, mas a viagem está longe de ter sido um
desperdício para o bolsonarismo. Tem uma aposta retórica e outra, estratégica -
para o front interno de sua disputa, esclareça-se. Ambas arriscadas.
Se, como disse duas vezes em Moscou e
repetiria no Carnaval do Guarujá, Bolsonaro foi à Rússia compartilhar com Putin
“a crença em Deus e nos valores da família”, a carnificina da guerra tratará de
contradizê-lo. Além disso, parece ter resolvido enfrentar sua base olavista,
liderada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, mantendo a viagem à Rússia porque
achou que pegava mal essa coisa de não conseguir ser levado a sério por ninguém
fora do Brasil.
Foi isso que disse no Guarujá: “Fui o
último chefe de Estado que foi lá. Pelo espaço que [Putin] deu para mim, somos
importantes. Somos bem recebidos em qualquer lugar (...) o Brasil é um exemplo
para o mundo”. Um repórter levantou a bola e ele cortou, certo de que destroçaria
o presidente francês, Emmanuel Macron e afagaria o autocrata russo a quem
chamou de “amigo” incapaz de promover um massacre: “Macron foi recebido sozinho
no aeroporto. Para mim teve honras militares. Ele ficou afastado da mesa,
apesar de vacinado. Putin ficou sem máscara ao meu lado. Achei uma deferência
enorme, carinho mesmo pelos brasileiros”.
Se não colar, ele muda o discurso. Mais
consolidada é a parceria de Braga Netto, com quem parece ter escolhido ir
adiante em sua jornada de mistificação. Desde a viagem a Moscou, Bolsonaro
passou a colocar Braga Netto no mesmo patamar de França como ministros aos
quais ele recorre para definir sua política externa.
Se Hamilton Mourão lhe ofereceu a blindagem
contra impeachment, o ministro da Defesa promete mais. É um combo de vantagens
que precede a eleição de 2018 e ultrapassa a de 2022. Ao retornar da Rússia,
onde Braga Netto era a estrela de uma comitiva composta de ministros de origem
militar, à exceção do chanceler, Bolsonaro foi à reunião do Alto Comando do
Exército.
Encontrou um colegiado ressabiado com a
aproximação do Brasil com a Rússia mas tolerante com o azedume do presidente
com o Supremo Tribunal Federal. Não apenas compartilhou sua intenção de nomear
Braga Netto para a vice como a de fazer do atual comandante do Exército,
general Paulo Sérgio Oliveira, o ministro da Defesa. A primeira informação já
parecia ser do conhecimento de todos, dada a percepção de que a Defesa tem se
dedicado à divulgação das ações da Pasta com especial afinco.
A escolha do general surpreendeu mais. Não
apenas porque Bolsonaro chegou a pedir sua cabeça no episódio que resultou na
saída do ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, como também porque
Paulo Sérgio Oliveira, tem conduzido a tropa à maneira de seu antecessor - sem
declarações e rigoroso no controle da politização dos quartéis.
Sua saída neste momento, lembra um general
da reserva com franca interlocução naquele colegiado, aproxima a dança das
cadeiras no comando do Exército brasileiro com aquele do governo João Goulart.
Em dois anos e meio o Exército de Jango foi comandado por quatro generais. Na
Nova República, a permanência dos comandantes por quatro anos só foi quebrada
no impeachment de Collor. Se a troca se efetivar agora, será o terceiro
comandante do Exército no mandato do capitão.
É por esta razão que outro general da
reserva, conhecedor dos fatos, teme que a escolha seja feita não para levar o
general Paulo Sérgio Oliveira para a Defesa, mas para tirá-lo do comando do
Exército. É uma repetição do que aconteceu na Defesa em 2021. A necessidade de
abrigar o Centrão na Casa Civil foi a desculpa para colocar o ex-titular da
Pasta, Braga Netto, na Defesa quando o que se queria mesmo era desalojar
Azevedo e Silva e, em seguida, o general Leal Pujol do comando do Exército.
Para isso, seria preciso que o nome a ser
escolhido para o comando do Exército rezasse pela cartilha de Bolsonaro. O
ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, reza, mas não
é aceito pelo Alto Comando. Marco Antonio Freire Gomes, comandante de Operações
Terrestres e único general da ativa na comitiva de Moscou, passa, até porque o
colegiado não aposta que um dos seus se guie pela cartilha do capitão. Mas tem
uma vaga no Superior Tribunal Militar prometida, sinecura que lhe garantiria 12
anos de sombra ante a aventura de 9 meses no comando de uma tropa que o capitão
quer manipular.
A costura de uma troca no comando do
Exército no meio da guerra na Ucrânia dá uma ideia da dramaticidade de seu
destino. O atual ministro da Defesa, que foi interventor na segurança pública
do Rio em 2018, não é apenas a caixa-preta das relações da polícia militar com
as milícias cariocas. Ele era o coordenador do comitê de crise na covid-19.
Nessa condição, participou da reunião em
que foi proposta a troca da bula da cloroquina, esteve à frente da negociação
com o consórcio da OMS pela Covax facility, que resultou no atraso de
recebimento de vacinas pelo Brasil, e das decisões retardadas que resultaram na
crise do oxigênio em Manaus. Por isso, foi arrolado pela CPI da Covid no crime
de pandemia, previsto no Código Penal. É um dos 68 de uma lista encabeçada pelo
presidente da República.
Ao colocar Braga Netto na vice, Bolsonaro
busca uma equação para o presente, com um exército sobre o qual possa influenciar,
e para o futuro. Quer a cumplicidade das Forças Armadas para evitar que ele e
seu vice acabem no xadrez. Arrisca findar num abraço de afogados.
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