O Estado de S. Paulo / O Globo
‘Não matarás’ é válido em toda sociedade conhecida. Por isso, a invasão da Ucrânia é bárbara
Meu pessimismo reafirma que a morte se faz
presente de modo excepcional no nosso mundo.
Mal saímos de uma pandemia, com uma enorme
possibilidade de contrair o vírus e dele adoecer e morrer aos milhares, e um
czar-oligarca russo invade um país vizinho e, onipotente, ameaça usar suas
ogivas atômicas – aquelas que provam o nosso lado diabólico – e desfaz tudo o
que merece o nome de civilização.
Eis uma clara revelação de como
projetávamos nos chamados “povos selvagens” esse brutal antidiálogo chamado
“guerra”.
Essa patologia sem vacina, na qual as palavras que fabricam e enriquecem a vida são trocadas pelas bombas e pelos tiros, que suspendem e incentivam o “não matarás”.
Todos sabemos que vida e morte são os dois
lados de um baralho cujas cartas têm dois lados. Num deles, há uma figura que
singulariza e pode ser preta ou vermelha, comum ou nobre, ao passo que, no seu
verso, existe apenas um gráfico impessoal e decorativo incapaz de produzir um
“jogo” ou “cartada”. Em outras palavras, de expressar qualquer combinação
vencedora. Os jogadores só enxergam essa universalidade decorativa e neutra,
mas o jogador individual recebe um conjunto particular somente visto por ele,
cujo sentido pode torná-lo perdedor ou vencedor.
A pandemia nos pegou como esse lado
decorativo do baralho. Ela, sem dúvida, predispunha pobres e desvalidos a
maiores riscos, mas a doença tem um lado aleatório e imprevisível, típico das
moléstias transmissíveis de massa. Para a maioria das pessoas e respeitando
aqueles que acreditam em destino, castigo e entidades sobre-humanas, a pandemia
não era um sujeito, ela não dispunha, como nós, de uma consciência dotada de
intenção. Seu único propósito era expandir-se, esse axioma de toda forma de
vida...
Por isso, falamos numa luta, mais do que
numa guerra contra o vírus, mas, no debate sobre a sua origem e malefício, o
político-ideológico substituiu o biológico. De fato, liquida-se um vírus com
uma vacina, ao passo que até hoje não conseguimos nem acabar com (ou saber
sobre) as recorrências dos dogmatismos produtores das guerras. Essa destruição
irracional paradoxalmente planificada.
Um tipo de reciprocidade negativa que Freud
tentou compreender no seu famoso Considerações Atuais Sobre a Guerra e a Morte
(1915), cujo centro é o mencionado dever de matar numa perversa reversão do que
honramos como humano. E, por isso, o “não matarás” é válido em toda sociedade
conhecida. Por isso, a invasão da Ucrânia é, além de bárbara, uma vergonha.
*É Antropólogo Social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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