quarta-feira, 16 de março de 2022

Roberto DaMatta*: A guerra é uma patologia sem vacina

O Estado de S. Paulo / O Globo

‘Não matarás’ é válido em toda sociedade conhecida. Por isso, a invasão da Ucrânia é bárbara

Meu pessimismo reafirma que a morte se faz presente de modo excepcional no nosso mundo.

Mal saímos de uma pandemia, com uma enorme possibilidade de contrair o vírus e dele adoecer e morrer aos milhares, e um czar-oligarca russo invade um país vizinho e, onipotente, ameaça usar suas ogivas atômicas – aquelas que provam o nosso lado diabólico – e desfaz tudo o que merece o nome de civilização.

Eis uma clara revelação de como projetávamos nos chamados “povos selvagens” esse brutal antidiálogo chamado “guerra”.

Essa patologia sem vacina, na qual as palavras que fabricam e enriquecem a vida são trocadas pelas bombas e pelos tiros, que suspendem e incentivam o “não matarás”.

Todos sabemos que vida e morte são os dois lados de um baralho cujas cartas têm dois lados. Num deles, há uma figura que singulariza e pode ser preta ou vermelha, comum ou nobre, ao passo que, no seu verso, existe apenas um gráfico impessoal e decorativo incapaz de produzir um “jogo” ou “cartada”. Em outras palavras, de expressar qualquer combinação vencedora. Os jogadores só enxergam essa universalidade decorativa e neutra, mas o jogador individual recebe um conjunto particular somente visto por ele, cujo sentido pode torná-lo perdedor ou vencedor.

A pandemia nos pegou como esse lado decorativo do baralho. Ela, sem dúvida, predispunha pobres e desvalidos a maiores riscos, mas a doença tem um lado aleatório e imprevisível, típico das moléstias transmissíveis de massa. Para a maioria das pessoas e respeitando aqueles que acreditam em destino, castigo e entidades sobre-humanas, a pandemia não era um sujeito, ela não dispunha, como nós, de uma consciência dotada de intenção. Seu único propósito era expandir-se, esse axioma de toda forma de vida...

Por isso, falamos numa luta, mais do que numa guerra contra o vírus, mas, no debate sobre a sua origem e malefício, o político-ideológico substituiu o biológico. De fato, liquida-se um vírus com uma vacina, ao passo que até hoje não conseguimos nem acabar com (ou saber sobre) as recorrências dos dogmatismos produtores das guerras. Essa destruição irracional paradoxalmente planificada.

Um tipo de reciprocidade negativa que Freud tentou compreender no seu famoso Considerações Atuais Sobre a Guerra e a Morte (1915), cujo centro é o mencionado dever de matar numa perversa reversão do que honramos como humano. E, por isso, o “não matarás” é válido em toda sociedade conhecida. Por isso, a invasão da Ucrânia é, além de bárbara, uma vergonha.

*É Antropólogo Social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’

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