O Globo
O reacionarismo histérico, impulsionado por
notícias falsas e pela disseminação da narrativa segundo a qual a cultura e a
educação estavam sob uma espécie de ditadura progressista que minava os valores
da família, foi um dos ingredientes fundamentais para a eleição de Jair
Bolsonaro em 2018.
Peças de publicidade à primeira vista
toscas demais para ser críveis, como a que dizia que Fernando Haddad havia
distribuído mamadeiras com bicos em forma de pênis em creches quando fora
prefeito de São Paulo e, se eleito presidente, “nacionalizaria” a prática,
cumpriram o circuito tradicional das fake news naquele pleito: nasciam em
grupos do Facebook, se espraiavam pelo WhatsApp e paravam, aqui e ali, em
postagens de políticos, que lhes emprestavam ares de verossimilhança.
Esse caldo de cultura do submundo das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, que tenho chamado aqui de Bolsoverso, teve reflexo nas ruas, com ofensivas de grupos como o MBL, que promoveu o boicote e a vandalização de uma exposição, a “Queermuseu”, em 2017 e 2018.
O feito que o bolsonarismo pretende operar
agora é repetir a radicalização da pauta eleitoral, trazendo para o debate
político temas absolutamente laterais, ou francamente importados de outros
países, para que ajudem a reorganizar o eleitorado “conservador” que se
dispersou nos últimos anos diante dos desacertos do governo na economia e na
gestão da pandemia.
Nada mais conveniente -- num momento em que
Jair Bolsonaro vê a inflação ameaçar a melhora que ele vinha conseguindo nas
pesquisas graças à queima de altas quantidades de dinheiro público -- que
trazer para o centro do debate temas como aborto e pedofilia e fazer deles
ameaças a pairar sobre os lares brasileiros, principalmente caso Lula vença as
eleições.
Já seria uma tremenda manipulação do debate
público se fosse feito como antes, pelo gabinete do ódio em mesas infestadas de
latas de leite condensado. O que torna a operação bem mais grave é que ela
agora se dá com aparato estatal.
O Ministério da Justiça decretou a censura
a um filme de 2017 (!) alegando apologia à pedofilia. O moralismo pretérito é
tão hipócrita que os indignados de hoje, como o dublê de deputado e pastor
Marcos Feliciano, foram os entusiastas à época do lançamento do filme, baseado
num livro do comediante Danilo Gentili, por ser uma reação ao “politicamente
correto”, da esquerda.
Gentili era antes visto como aliado dessa
direita reacionária. Seus memes e suas piadas eram disseminados como pão quente
pelos grupos bolsonaristas, até ele passar a criticar o governo e, então, ser
catalogado como inimigo.
É inaceitável que se ressuscite a censura
no Brasil, pouco importando aqui a qualidade da obra em tela. Crimes, desvios
de conduta, patologias e outras escatologias estão presentes num sem-número de
obras de arte, e isso não é razão coberta pela lei brasileira para bani-las.
A escalada de Bolsonaro sobre o aparato de
Estado para se beneficiar politicamente inclui o aparelhamento da Polícia
Federal, o lançamento do diretor da Abin como candidato (!!) e, agora, a
transformação do Ministério da Justiça em órgão censor, com direito a peroração
moralista do próprio ministro em redes sociais.
Quando você conjuga a montagem dessa
máquina de perseguição e propaganda ideológica incrustada no governo federal ao
uso indiscriminado e cada vez mais desesperado de dinheiro público sem lastro
para tentar conter os estragos da inflação na popularidade do capitão, o que se
tem é um pleito em que o abuso do poder político e econômico ganha uma
conformação inédita.
Até aqui, isso passou batido pelos partidos
e pelo Ministério Público, a que caberia alertar a Justiça Eleitoral sobre o
cometimento cotidiano de crimes contra a lisura na disputa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário