quarta-feira, 16 de março de 2022

Vera Magalhães: Reacionarismo com aparato estatal

O Globo

O reacionarismo histérico, impulsionado por notícias falsas e pela disseminação da narrativa segundo a qual a cultura e a educação estavam sob uma espécie de ditadura progressista que minava os valores da família, foi um dos ingredientes fundamentais para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Peças de publicidade à primeira vista toscas demais para ser críveis, como a que dizia que Fernando Haddad havia distribuído mamadeiras com bicos em forma de pênis em creches quando fora prefeito de São Paulo e, se eleito presidente, “nacionalizaria” a prática, cumpriram o circuito tradicional das fake news naquele pleito: nasciam em grupos do Facebook, se espraiavam pelo WhatsApp e paravam, aqui e ali, em postagens de políticos, que lhes emprestavam ares de verossimilhança.

Esse caldo de cultura do submundo das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, que tenho chamado aqui de Bolsoverso, teve reflexo nas ruas, com ofensivas de grupos como o MBL, que promoveu o boicote e a vandalização de uma exposição, a “Queermuseu”, em 2017 e 2018.

O feito que o bolsonarismo pretende operar agora é repetir a radicalização da pauta eleitoral, trazendo para o debate político temas absolutamente laterais, ou francamente importados de outros países, para que ajudem a reorganizar o eleitorado “conservador” que se dispersou nos últimos anos diante dos desacertos do governo na economia e na gestão da pandemia.

Nada mais conveniente -- num momento em que Jair Bolsonaro vê a inflação ameaçar a melhora que ele vinha conseguindo nas pesquisas graças à queima de altas quantidades de dinheiro público -- que trazer para o centro do debate temas como aborto e pedofilia e fazer deles ameaças a pairar sobre os lares brasileiros, principalmente caso Lula vença as eleições.

Já seria uma tremenda manipulação do debate público se fosse feito como antes, pelo gabinete do ódio em mesas infestadas de latas de leite condensado. O que torna a operação bem mais grave é que ela agora se dá com aparato estatal.

O Ministério da Justiça decretou a censura a um filme de 2017 (!) alegando apologia à pedofilia. O moralismo pretérito é tão hipócrita que os indignados de hoje, como o dublê de deputado e pastor Marcos Feliciano, foram os entusiastas à época do lançamento do filme, baseado num livro do comediante Danilo Gentili, por ser uma reação ao “politicamente correto”, da esquerda.

Gentili era antes visto como aliado dessa direita reacionária. Seus memes e suas piadas eram disseminados como pão quente pelos grupos bolsonaristas, até ele passar a criticar o governo e, então, ser catalogado como inimigo.

É inaceitável que se ressuscite a censura no Brasil, pouco importando aqui a qualidade da obra em tela. Crimes, desvios de conduta, patologias e outras escatologias estão presentes num sem-número de obras de arte, e isso não é razão coberta pela lei brasileira para bani-las.

A escalada de Bolsonaro sobre o aparato de Estado para se beneficiar politicamente inclui o aparelhamento da Polícia Federal, o lançamento do diretor da Abin como candidato (!!) e, agora, a transformação do Ministério da Justiça em órgão censor, com direito a peroração moralista do próprio ministro em redes sociais.

Quando você conjuga a montagem dessa máquina de perseguição e propaganda ideológica incrustada no governo federal ao uso indiscriminado e cada vez mais desesperado de dinheiro público sem lastro para tentar conter os estragos da inflação na popularidade do capitão, o que se tem é um pleito em que o abuso do poder político e econômico ganha uma conformação inédita.

Até aqui, isso passou batido pelos partidos e pelo Ministério Público, a que caberia alertar a Justiça Eleitoral sobre o cometimento cotidiano de crimes contra a lisura na disputa.


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