Valor Econômico
A falta de diálogo entre os atores
políticos alimenta o flerte do Executivo com o golpismo
Um antigo observador da cena política, com
livre trânsito em diversas esferas dos três Poderes, faz o alerta: se todos que
têm responsabilidade com a manutenção das regras democráticas não voltarem a
conversar, as condições estarão dadas no Brasil para um golpe ainda este ano. O
tema, que havia sido retirado de pauta depois do recuo do presidente Jair
Bolsonaro no feriado da independência, já voltou à agenda de assombrações no
feriado de Tiradentes, graças a dois episódios: o indulto presidencial ao
deputado Daniel Silveira e a desavença entre o ministro Luís Roberto Barroso e
o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira.
Barroso entrou nessa por acidente. A fala em si do ministro do Supremo Tribunal Federal em um evento acadêmico no exterior foi muito criticada, mas está longe de ser caluniosa às Forças Armadas como o general indicou. Foi, isso sim, um ataque, quase uma denúncia ao presidente Jair Bolsonaro, ainda que sem jamais mencioná-lo. O ministro fez uma indagação retórica, ao se referir ao voto eletrônico: “As Forças Armadas estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo?” Mais adiante, ressalvou: “Nestes 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não veio notícia ruim, e que teve um comportamento exemplar, foram as Forças Armadas.”
A resposta em tom muito acima do normal do
general Paulo Sérgio sugere que se procurou criar um cavalo de batalha, para se
ficar em jargão militar. Um tumulto por pouca coisa. Roteiro semelhante
aconteceu em 1968, quando um discurso provocativo banal do deputado Márcio
Moreira Alves desencadeou uma crise entre a cúpula do regime militar e o
Congresso que desembocaria na decretação do AI-5.
O indulto a Daniel Silveira simbolizou o
fim da trégua entre Bolsonaro e o Judiciário. Afinal, o deputado foi condenado
pelo Supremo por incitar agressão a membros do STF. Ao indultar, Bolsonaro
endossou este comportamento.
Quis o destino que as eleições de outubro
venham a ser presididas pelo ministro Alexandre Moraes, no TSE, e o Supremo
fique nas mãos de Rosa Weber. Eles assumirão estes postos a poucas semanas do
pleito. Moraes está em pleno contencioso com Bolsonaro e Rosa Weber é famosa por
seguir o figurino clássico da magistratura: inabordável, avessa a contatos
políticos mesmo com seus colegas de corte, voltada para a doutrina.
A presença de Moraes à frente do TSE pode
estimular os apóstolos do golpe a reforçar narrativas de que a Justiça
Eleitoral no Brasil se partidarizou. O fato disso não ser verdade é irrelevante
para quem procura pretextos para deslegitimar o processo e abrir caminho para
um golpe. O temperamento distante de Rosa Weber pode ser um complicador para
que ela exerça liderança sobre seus pares e capacidade de negociação e
persuasão junto a outras forças.
A blindagem do sistema contra um golpe
envolveria tirar as Forças Armadas do isolamento que vivem. Hoje os generais,
brigadeiros e almirantes basicamente só estão conversando entre si e com o
presidente Jair Bolsonaro. Não há pontes estabelecidas, canais de comunicação
azeitados, entre o Judiciário e o meio militar, ou entre o Congresso e o meio
militar, e muito menos entre a oposição e os quartéis.
Entre 1983 e 1984, no fim do governo
Figueiredo, uma reação no meio militar contra o fim do regime autoritário e a
ascensão de Tancredo Neves chegou a se armar. Esta inquietação foi neutralizada
porque havia pontes entre os militares e outros atores políticos, conforme
relatos inclusive da imprensa da época. O então governador paranaense José
Richa era bem relacionado com o comandante do 3º Exército e o próprio Tancredo
conseguiu estabelecer diálogo com o ex-presidente Ernesto Geisel e com o
ministro do Exército, general Walter Pires.
Desta vez, comenta esta fonte, não tem
ninguém conversando com ninguém. O líder nas pesquisas de intenção de voto,
Luiz Inácio Lula da Silva, acaba de ser enquadrado pelo PT e perder o comando
da comunicação de sua própria campanha, com a provável substituição de Franklin
Martins, um nome seu, por um burocrata da máquina partidária.
Lula ainda se enreda dentro da sua própria
base e com a negociação entre correligionários e aliados. Não está falando com
os que não estarão com ele durante a campanha, mas que poderão garantir a sua
governabilidade, caso venha a ser eleito. Ele não tem interlocutor junto às
Forças Armadas e, se assim continuar, não terá como desarmar uma contestação
militar de um eventual triunfo eleitoral seu. Não está se preparando como Tancredo
se preparou. Aparentemente, acha que as circunstâncias institucionais de 2022
serão iguais às de 2002, data de sua chegada ao poder. Não serão. O jogo mudou.
Mas a falta de diálogo, segundo este
observador, vai além. As principais lideranças do Congresso deixaram que o
corporativismo falasse mais alto ao endossarem o indulto ao parlamentar. A
principal iniciativa institucional do presidente da Câmara dos Deputados nas
últimas semanas pode ser classificada como no mínimo estranha, de tal modo
inoportuna: a instalação de uma comissão para estudar a implantação do
semipresidencialismo a partir de 2030. É de se pensar como será a discussão
deste assunto em novembro, com a confusão se desenhando no horizonte.
Em favor de Lira e Pacheco, um sinal de
alerta foi o fato de ambos terem se manifestado ontem em redes sociais para
defender o sistema eleitoral.
Sobre o ensaio de golpe que se desenha no
horizonte brasileiro segundo as leituras mais pessimistas: a se confirmar a
distopia, seria um autogolpe, com aval das Forças Armadas, para anular um
resultado eleitoral adverso. Uma quebra da institucionalidade neste formato
contaria com um fortíssimo fator de desestímulo para aqueles que cogitam
tentá-la. Trata-se da taxa de insucesso, que é alta.
De Donald Trump (Estados Unidos) a Laurent
Gbagbo (Costa do Marfim), passando por Slobodan Milosevic (Iugoslávia), Evo
Morales (Bolívia) e Alberto Fujimori (Peru), o resultado foi quase sempre o
mesmo. Presidentes que promoveram fraude eleitoral, ou contestaram eleições legítimas
em que saíram derrotados não conseguiram continuar no poder. Os casos de
democracias que se converteram em autocracias são de presidentes que contavam
com força popular: Putin, Erdogan, Narendra Modi, Órban, ou o salvadorenho
Nayib Bukele. Nestes casos, a taxa de sucesso do golpismo é alta. E a
necessidade de diálogo para o estabelecimento da resistência é muito maior.
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