sexta-feira, 29 de abril de 2022

César Felício: O golpe, de novo

Valor Econômico

A falta de diálogo entre os atores políticos alimenta o flerte do Executivo com o golpismo

Um antigo observador da cena política, com livre trânsito em diversas esferas dos três Poderes, faz o alerta: se todos que têm responsabilidade com a manutenção das regras democráticas não voltarem a conversar, as condições estarão dadas no Brasil para um golpe ainda este ano. O tema, que havia sido retirado de pauta depois do recuo do presidente Jair Bolsonaro no feriado da independência, já voltou à agenda de assombrações no feriado de Tiradentes, graças a dois episódios: o indulto presidencial ao deputado Daniel Silveira e a desavença entre o ministro Luís Roberto Barroso e o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira.

Barroso entrou nessa por acidente. A fala em si do ministro do Supremo Tribunal Federal em um evento acadêmico no exterior foi muito criticada, mas está longe de ser caluniosa às Forças Armadas como o general indicou. Foi, isso sim, um ataque, quase uma denúncia ao presidente Jair Bolsonaro, ainda que sem jamais mencioná-lo. O ministro fez uma indagação retórica, ao se referir ao voto eletrônico: “As Forças Armadas estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo?” Mais adiante, ressalvou: “Nestes 33 anos de democracia, se teve uma instituição de onde não veio notícia ruim, e que teve um comportamento exemplar, foram as Forças Armadas.”

A resposta em tom muito acima do normal do general Paulo Sérgio sugere que se procurou criar um cavalo de batalha, para se ficar em jargão militar. Um tumulto por pouca coisa. Roteiro semelhante aconteceu em 1968, quando um discurso provocativo banal do deputado Márcio Moreira Alves desencadeou uma crise entre a cúpula do regime militar e o Congresso que desembocaria na decretação do AI-5.

O indulto a Daniel Silveira simbolizou o fim da trégua entre Bolsonaro e o Judiciário. Afinal, o deputado foi condenado pelo Supremo por incitar agressão a membros do STF. Ao indultar, Bolsonaro endossou este comportamento.

Quis o destino que as eleições de outubro venham a ser presididas pelo ministro Alexandre Moraes, no TSE, e o Supremo fique nas mãos de Rosa Weber. Eles assumirão estes postos a poucas semanas do pleito. Moraes está em pleno contencioso com Bolsonaro e Rosa Weber é famosa por seguir o figurino clássico da magistratura: inabordável, avessa a contatos políticos mesmo com seus colegas de corte, voltada para a doutrina.

A presença de Moraes à frente do TSE pode estimular os apóstolos do golpe a reforçar narrativas de que a Justiça Eleitoral no Brasil se partidarizou. O fato disso não ser verdade é irrelevante para quem procura pretextos para deslegitimar o processo e abrir caminho para um golpe. O temperamento distante de Rosa Weber pode ser um complicador para que ela exerça liderança sobre seus pares e capacidade de negociação e persuasão junto a outras forças.

A blindagem do sistema contra um golpe envolveria tirar as Forças Armadas do isolamento que vivem. Hoje os generais, brigadeiros e almirantes basicamente só estão conversando entre si e com o presidente Jair Bolsonaro. Não há pontes estabelecidas, canais de comunicação azeitados, entre o Judiciário e o meio militar, ou entre o Congresso e o meio militar, e muito menos entre a oposição e os quartéis.

Entre 1983 e 1984, no fim do governo Figueiredo, uma reação no meio militar contra o fim do regime autoritário e a ascensão de Tancredo Neves chegou a se armar. Esta inquietação foi neutralizada porque havia pontes entre os militares e outros atores políticos, conforme relatos inclusive da imprensa da época. O então governador paranaense José Richa era bem relacionado com o comandante do 3º Exército e o próprio Tancredo conseguiu estabelecer diálogo com o ex-presidente Ernesto Geisel e com o ministro do Exército, general Walter Pires.

Desta vez, comenta esta fonte, não tem ninguém conversando com ninguém. O líder nas pesquisas de intenção de voto, Luiz Inácio Lula da Silva, acaba de ser enquadrado pelo PT e perder o comando da comunicação de sua própria campanha, com a provável substituição de Franklin Martins, um nome seu, por um burocrata da máquina partidária.

Lula ainda se enreda dentro da sua própria base e com a negociação entre correligionários e aliados. Não está falando com os que não estarão com ele durante a campanha, mas que poderão garantir a sua governabilidade, caso venha a ser eleito. Ele não tem interlocutor junto às Forças Armadas e, se assim continuar, não terá como desarmar uma contestação militar de um eventual triunfo eleitoral seu. Não está se preparando como Tancredo se preparou. Aparentemente, acha que as circunstâncias institucionais de 2022 serão iguais às de 2002, data de sua chegada ao poder. Não serão. O jogo mudou.

Mas a falta de diálogo, segundo este observador, vai além. As principais lideranças do Congresso deixaram que o corporativismo falasse mais alto ao endossarem o indulto ao parlamentar. A principal iniciativa institucional do presidente da Câmara dos Deputados nas últimas semanas pode ser classificada como no mínimo estranha, de tal modo inoportuna: a instalação de uma comissão para estudar a implantação do semipresidencialismo a partir de 2030. É de se pensar como será a discussão deste assunto em novembro, com a confusão se desenhando no horizonte.

Em favor de Lira e Pacheco, um sinal de alerta foi o fato de ambos terem se manifestado ontem em redes sociais para defender o sistema eleitoral.

Sobre o ensaio de golpe que se desenha no horizonte brasileiro segundo as leituras mais pessimistas: a se confirmar a distopia, seria um autogolpe, com aval das Forças Armadas, para anular um resultado eleitoral adverso. Uma quebra da institucionalidade neste formato contaria com um fortíssimo fator de desestímulo para aqueles que cogitam tentá-la. Trata-se da taxa de insucesso, que é alta.

De Donald Trump (Estados Unidos) a Laurent Gbagbo (Costa do Marfim), passando por Slobodan Milosevic (Iugoslávia), Evo Morales (Bolívia) e Alberto Fujimori (Peru), o resultado foi quase sempre o mesmo. Presidentes que promoveram fraude eleitoral, ou contestaram eleições legítimas em que saíram derrotados não conseguiram continuar no poder. Os casos de democracias que se converteram em autocracias são de presidentes que contavam com força popular: Putin, Erdogan, Narendra Modi, Órban, ou o salvadorenho Nayib Bukele. Nestes casos, a taxa de sucesso do golpismo é alta. E a necessidade de diálogo para o estabelecimento da resistência é muito maior.

 

Nenhum comentário: