Folha de S. Paulo
Decisão de comitê da ONU sobre Lula expõe
brechas perigosas na Justiça
O Comitê de Direitos Humanos da ONU, que
monitora o cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, acaba de
reconhecer que o processo contra o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) violou as garantias do devido processo legal
e seus direitos políticos.
Foi constatado que o ex-presidente teve
seus direitos violados pelo Estado brasileiro ao não ter acesso a um processo
justo e não ter tido protegida sua presunção de inocência. Ao mesmo tempo, o
comitê reconheceu que Lula teve seu direito à participação política igualmente
violado durante o pleito de 2018,
quando foi impedido de concorrer.
A decisão do comitê deve ser lida com cuidado por todos que atuam para proteger e promover a democracia e o Estado de Direito no Brasil. As violações sofridas pelo ex-presidente individualmente, desde sua caçada televisionada até sua prisão prolongada, tiveram impacto imediato e profundo na trajetória política e social do país.
O governo Jair
Bolsonaro (PL), fruto maior dessa sequência nefasta, iniciou um
dos períodos de maior retrocesso na nossa história política desde o fim
da ditadura de
1964. A decisão do comitê da ONU, ao ratificar as violações sofridas
por Lula, confirma que na democracia brasileira sobrevivem falhas estruturais
no sistema de Justiça, e essas brechas dão espaço para perigosas forças antidemocráticas.
Absurdos cometidos desde a primeira
instância, ao divulgar-se em rede nacional áudios de
interceptação telefônica ilegal da própria presidenta Dilma
Rousseff (PT) até os erráticos trâmites no sistema judicial,
com alto grau de imprevisibilidade e voluntarismo, jogando e tirando temas de
pauta, alterando decisões individualmente de um dia para outro.
Durante os processos sobrevivia uma
proximidade perigosa entre operadores da Justiça e donos do poder. Contatos
especiais adiantando informações sobre a perseguição ao ex-presidente Lula e
humilhando seus familiares, publicidade oportunista de delações, projetos de
pactos e traições que gestaram a insegurança institucional que explodiu com
Bolsonaro no poder.
Preso injustamente por 580 dias,
o ex-presidente Lula enfrentou os abusos de um sistema de Justiça penal que
chegou à crueldade de negar a um detento a possibilidade de viver o luto em
família. Foi impedido de conceder entrevistas, mantido em completo isolamento enquanto
ocorria o processo eleitoral.
A ficção de guerra implacável contra a
corrupção abria espaço para todo o tipo de exceções, acelerando condenações
improvisadas sem mesmo ter o cuidado de uma revisão de texto de sentenças.
Nosso passado autoritário não é passado
ainda. A guinada autoritária que se inicia com o impeachment da
ex-presidenta Dilma e que culmina no processo que condenou e silenciou o
ex-presidente Lula fez reflorescer o que havia de pior nos padrões de violência
e arbítrio que nossas três décadas de democracia não conseguiram debelar.
Negando os crimes do regime militar, como ainda
fazem repetidamente algumas autoridades civis e militares,
celebrando a ditadura de 1964, negando o racismo estrutural, a discriminação de
gênero e a desigualdade econômica brutal.
Desse modo, as forças mais retrógradas da
nossa vida política conquistaram um espaço jamais alcançado antes sob a Constituição
de 1988 e iniciaram um processo de acelerada desconsolidação
da nossa democracia. A decisão do comitê
chega quando o país se prepara para mais uma eleição.
Que todas as forças políticas compromissadas com a democracia, que todos os
participantes do debate que começa percebam que, quando se trata da proteção de
garantias fundamentais, não pode haver espaço para improvisação. Desqualificar
o Estado de Direito e atacar garantias fundamentais, como a observância do
devido processo legal, têm preço altíssimo. Sempre.
*Professor titular de ciência política da
USP, foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e ministro da
Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário