O Globo
Jair Bolsonaro tratou de, em menos de uma
semana, dar completa razão ao ministro Luís Roberto Barroso, que havia
afirmado, em seminário no último fim de semana, que as Forças Armadas estão
sendo orientadas a questionar a lisura do processo eleitoral brasileiro.
Em duas oportunidades o presidente, de viva
voz, instou as Forças Armadas a continuar a questionar a transparência da
votação eletrônica, sempre “embasando” seu clamor em informações falsas.
Numa solenidade por si só já eivada de
caráter golpista, em que Bolsonaro e apoiadores fizeram uma espécie de
desagravo a Daniel Silveira, o presidente colocou explicitamente em dúvida a
realização das eleições caso fatos “anormais” ocorram. Os únicos fatos anormais
que ameaçam a realização do pleito são as investidas sistemáticas do presidente
da República contra a Justiça Eleitoral.
Ele chegou ao disparate de dizer que a sala-cofre do Tribunal Superior Eleitoral, malandramente chamada por ele de “secreta”, para dar a ela ares de conspiração, seria um local onde algumas pessoas decidem quem vencerá a eleição!
Não há mais um limite sequer entre o que
sai da boca do presidente e o que dá na sua telha. Fatos, liturgia do cargo,
responsabilidade com o país e a institucionalidade foram mandados às favas.
Bolsonaro já nem finge que governa. Respira, almoça, janta e dorme agindo para
tumultuar o ambiente político e institucional do Brasil e para a tentativa de
se reeleger.
Na live desta quinta-feira, ele fez uma
espécie de pot-pourri de todas as
suas aleivosias: defendeu que histórico de atleta previne Covid-19, lançou
dúvidas sobre a eficácia das vacinas sem nenhuma evidência e louvou sua
proximidade com Vladimir Putin, dois meses depois da guerra sangrenta que ele
empreende na Ucrânia.
Mas é sempre à contestação ao Judiciário, e
à Justiça Eleitoral especialmente, que ele dedica mais tempo. Bolsonaro foi
além do discurso da véspera e disse que as Forças Armadas “devem continuar
trabalhando para convencer o TSE” a aceitar supostas modificações técnicas
sugeridas por elas e a fazer uma apuração paralela dos votos.
Não existem sugestões feitas pelos
militares que tenham sido tecnicamente validadas. Nos últimos meses, o TSE
ampliou muito as formas de auditar as urnas eletrônicas. Informações foram
prestadas aos militares e aos partidos políticos, especialistas foram chamados
a analisar por dentro os mecanismos de votação. Não há nenhuma previsão
constitucional, lei ou norma que preveja que as Forças Armadas devam ter
qualquer papel na contagem de votos e na proclamação do resultado das eleições
no Brasil.
O que Bolsonaro será capaz de fazer para
forçar a barra nessa evidente, cristalina orientação dos militares para
tensionar o ambiente eleitoral no país?
O ministro Luiz Ramos já havia dado a letra
do samba de que eles avançariam na tentativa de envolver as Forças Armadas no
processo eleitoral quando disse, em resposta a Barroso, que as eleições são
tema concernente à soberania nacional. Ora, e em que a realização de eleições seguras
e limpas, realizadas por urnas eletrônicas desde 1996, põe em risco a soberania
nacional? Trata-se de mais um ingrediente perigoso, deletério para incendiar um
debate que, por obra e graça do chefe do Executivo, já está por demais
envenenado.
Tudo isso é de uma gravidade absoluta. O fantasma da leitura golpista do Artigo 142 da Constituição como pretexto a uma “solução militar” para a desvantagem de Bolsonaro nas pesquisas já está em curso. Ou as Forças Armadas se arvoram de sua missão constitucional — e se dissociam de forma clara e inequívoca dessa escalada de enfraquecimento da democracia — ou tratarão de, também elas, demonstrar que Barroso estava mais do que certo.
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