Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Votação de Le Pen e Mélenchon aponta para a
necessidade de concessões à base do eleitorado sinalizadas no primeiro discurso
de Macron reeleito
Quando Emmanuel Macron elegeu-se pela
primeira vez, em 2017, os ditos centristas do Brasil ganharam um ídolo. Havia
chegado ao poder, finalmente, aquele que, na terra que inventou o conceito,
abominava tanto a direita quanto a esquerda. No ano seguinte, a ilusão
tupiniquim produziu Jair Bolsonaro. Cinco anos depois, não há sinais claros de
que os recados da reeleição de Macron foram claramente decifrados no Brasil.
Não é, de fato, desprezível a primeira
reeleição de um presidente francês em 20 anos, especialmente por ter vencido as
duas únicas eleições que disputou sendo um novato na política. Somadas as
forças populistas, de direita e de esquerda, porém, o voluntarismo tecnocrático
com o qual assumiu em 2017 levou uma lavada que o próprio presidente reeleito
reconheceu no seu discurso de vitória, no Campo de Marte.
Nesse discurso, foi muito além de reconhecer uma votação que, em grande parte, se deveu menos às suas ideias do que à barreira que representou contra os extremismos. Ou ainda do reconhecimento do eleitorado de Marine Le Pen, que aumentou sua votação em relação a 2017 e deu a melhor performance eleitoral à extrema direita.
Este reconhecimento já estava presente no
discurso de 2017. Até o apelo ambiental, tão valorizado no discurso do Campo de
Marte, também estava lá. A mudança anunciada neste discurso tem outro viés. Ao
contrário de em 2017, Macron comprometeu-se com um “projeto social” e com uma
“sociedade mais justa”.
Na comparação com o discurso de sua
primeira eleição, trocou repetidos apelos à “coragem” pela menção à
“responsabilidade” e ao “senso de dever”. Parece ter sido sua opção para
enfrentar “a cólera e o desacordo” para os quais se disse comprometido a buscar
uma resposta.
E, finalmente, o que pode sugerir uma
mudança de nuance no segundo mandato é sua menção, igualmente ausente do
discurso de 2017, à necessidade de levar em conta as motivações dos 28% que se
abstiveram. Foi a maior taxa desde 1969, quando o candidato comunista (Jacques
Duclos), eliminado no primeiro turno, recusou-se a escolher entre “bonnet blanc
et blanc bonnet” (gorros brancos e brancos gorros), como denominou os dois
adversários à sua direita (Georges Pompidou e Alain Poher).
O discurso de maior apelo social e a
valorização daqueles que se abstiveram sugerem que Macron tenha ligado o sinal
de alerta em relação ao eleitorado de Jean-Luc Mélenchon. Se Marine Le Pen deu
à extrema direita a maior votação da história, o candidato de “La France
Insoumise” (França Insubmissa) surpreendeu no primeiro turno por uma votação
igualmente histórica da extrema esquerda, com 21,95%.
A votação representou uma diferença de
apenas 1,2 ponto percentual em relação àquela que levou a candidata do “Rassemblement
National” (Reunião Nacional) ao segundo turno. Se esta eleição não pode ser
considerada um repeteco daquela de 2017 é, principalmente, pelo fato de que as
forças políticas do país não estão divididas em dois principais polos, mas em
três, sendo Mélenchon o líder do terceiro.
Se o líder do França Insubmissa, depois do
primeiro turno, foi taxativo em recusar o voto em Le Pen, não o foi na
recomendação de voto em Macron, comportamento ao qual se atribui a quebra do
recorde de abstenção que já durava mais de 50 anos. Melhor orador da campanha,
Mélenchon carimbou a vitória de Macron: “Será o presidente de pior votação da
história da França”.
Ex-integrante do Partido Socialista,
ex-ministro do governo Leonel Jospin, Mélenchon deixou o PS para integrar o
“Partido de Esquerda”, em 2008, pelo qual disputou sua primeira eleição
presidencial em 2012. Quatro anos depois, lançou a sigla com a qual disputaria
as duas seguintes.
Este ano levou tão à risca sua disposição
de disputar o voto populista com Marine Le Pen que, depois de chamar o
movimento dos coletes-amarelos de “fascistas” e “lepenistas”, passou a defender
uma anistia às lideranças do movimento que haviam sido presas, proposta que nem
a candidatura do RN endossou.
O movimento dos coletes-amarelos ganhou
tração em 2018 quando Macron, recém-eleito, anunciou uma majoração gradativa
dos combustíveis fósseis como parte da transição energética do país. Se a
medida era digerível para a classe média dos grandes centros urbanos, usuária
de transporte público, não o foi para moradores da França profunda e,
principalmente, para os motoristas de caminhão, eixo de um movimento com
barricadas, bloqueio de estradas e protestos que redundaram em tumultos e
depredações em todo o país.
Mélenchon foi o candidato preferido do
movimento e, no segundo turno, viu esse eleitorado dar uma guinada de 180 graus
para Marine Le Pen. Assim que se confirmou a vitória de Macron, Mélenchon
anunciou o início do terceiro turno da disputa. Deu a medida do investimento
que fará nas eleições legislativas de meados de junho. A pretensão aberta é a
de fazer a maior bancada e compor com os demais partidos de esquerda para
tornar-se primeiro-ministro. Enfrenta, porém, enormes dificuldades na
unificação do bloco.
Marine Le Pen tampouco tem a adesão dos
demais candidatos de direita. O mais extremista deles, o jornalista Éric
Zemmour, abertamente antimuçulmano, declarou que, depois de oito derrotas do
sobrenome Le Pen, havia chegado a hora de Marine ceder a liderança da extrema
direita, condição que almeja a despeito de ter amealhado apenas 7% dos votos.
Foi graças ao radicalismo de Zemmour que
Marine Le Pen atravessou a campanha como uma candidata de feição mais moderada,
menos afeita ao discurso xenófobo e antieuropeísta. Focou na economia e nas
dificuldades dos mais jovens em arcar com o custo de vida. Candidata num
momento em que a premiê alemã Angela Merkel se retirou de cena, ensaiou a
moderação para ocupar seu lugar no imaginário europeu.
Se Zemmour tem a pretensão de disputar a
liderança do seu campo político, a outra candidata de direita, Valérie
Pécresse, do Republicanos, que teve 4,8% dos votos, anunciou apoio a Macron no
segundo turno.
É, por enquanto, a mais provável aliada da
futura base parlamentar de Macron. O presidente reeleito não terá vida fácil
para conciliar num único governo a turma de Valérie Pécresse e os votos de
esquerda que precisa atrair para esvaziar Mélenchon. Tanto precisa atrair seus
votos quanto aceitar que a extrema esquerda, sem uma boa representação
parlamentar, pode canalizar, para fora das vias institucionais, como de
costume, sua expressão política, numa ressurreição, por exemplo, dos
coletes-amarelos.
A tentativa de Macron de abrigar o
inconformismo francês com o radicalismo muçulmano no país provocou a maior
expressão da extrema direita no país. Em 2020, um professor de história usou
caricaturas do semanário satírico “Charlie Hebdo” em aula sobre liberdade de
expressão. Dez dias depois, foi decapitado por um refugiado checheno.
Macron, que deu ao professor um funeral de
honra, o situaria como vítima de um “atentado terrorista islâmico”. Na última
edição do segundo turno, o “Charlie Hebdo” estampou na sua primeira página:
“Second tour: Faut vraiment vous faire un dessin?” (“Segundo turno: é preciso
mesmo desenhar?”).
Se a linha anunciada no discurso vingar, o
investimento de Macron para tentar esvaziar Marine Le Pen e Mélenchon será pelo
atendimento às demandas por eles denunciadas. A principal delas, já escanteada
durante a campanha eleitoral, foi a de aumentar a idade mínima de aposentadoria
de 62 para 65 anos. “A proposta permitiu a Marine Le Pen se apresentar como
defensora das classes populares e daqueles que trabalham duro”, disse Thomas
Piketty em artigo às vésperas do segundo turno.
O economista da desigualdade também apontou
para a retaguarda aberta para Marine Le Pen por Macron, ao anular a taxação
sobre grandes fortunas financeiras. Ao se recusar a restabelecer o imposto,
Macron franqueou terreno para sua adversária propor a volta desse imposto. “Com
a ressalva hipócrita da exoneração das residências principais dos
multimilionários”, disse Piketty. O economista diz que, para tirar a carapuça
dos imigrantes e desarmar os rancores acumulados, Macron precisará avançar nas
políticas que atinjam o eleitorado de Mélenchon e Le Pen.
É com essa fantasia de neopopulista de
direita ao cubo que o presidente Jair Bolsonaro escolheu sair na campanha
presidencial deste ano. Basta ver a coleção de auxílios que já criou - da renda
básica de R$ 400 ao vale-gás, passando pela anistia das dívidas do Fies,
antecipação do 13º, liberação do FGTS, aumento no piso nacional dos professores
e o estabelecimento do piso dos enfermeiros que está na agulha para ser
aprovado pela Câmara. Se a inflação zerar os benefícios que tem fabricado em
série, Bolsonaro cultiva o plano B, que é o embate institucional, aposta que já
marcou, com sucesso, a campanha de 2018.
A reeleição de Macron, chefe de Estado com
o qual protagonizou os principais embates de seu mandato na questão ambiental,
certamente o levará a ressuscitar o discurso da soberania da Amazônia. As
pesquisas, porém, demonstram que o eleitorado não cairá facilmente nessa
tergiversação.
A sinuca de bico para ambos é a perspectiva
do acordo com o Mercosul. Negociado há duas décadas, o acordo era dado por
descartado, mas a guerra da Ucrânia o ressuscitou. A insegurança no
abastecimento nos setores de energia, matérias-primas e alimentos move,
principalmente, a Alemanha na tentativa de retomá-lo.
No último debate da campanha, Macron
sugeriu que o acordo premiaria um governo vilão no meio ambiente, como o de
Bolsonaro. O risco para o presidente francês é que o governo brasileiro, ávido
por algum trunfo internacional, esteja mais disposto a fazer concessões do que
um eventual governo Luiz Inácio Lula da Silva, a quem Macron recepcionou com
pompa e circunstância no Palácio do Eliseu e de quem recebeu apoio durante a
campanha.
Maria Cristina Fernandes
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