Revista Veja
A alta ansiedade
que assola a República tem razões que os poderes não deveriam ignorar
O Brasil tem um
presidente atrevido, todo mundo vê; disso nem seus adoradores discordam. O que
não se mostra evidente à primeira vista é a seletividade da ousadia. Quando
sente o frio do perigo na nuca, Jair Bolsonaro recua para simular trégua. Se
avalia o risco como de baixo custo com possibilidade de alto ganho, se atreve e
avança para o confronto.
Fez agora ao se
escudar na Constituição para derrubar uma decisão de dez dos onze ministros do
Supremo Tribunal Federal pela condenação do deputado Daniel Silveira a oito
anos e nove meses de prisão por incitação à violência contra o STF e alguns de
seus integrantes.
E por que agiu
assim, inclusive recusando de maneira debochada uma sugestão do ex-presidente
Michel Temer, a quem havia ouvido para recuar lá no dia 7 de setembro de 2021?
A Bolsonaro só interessa o jogo do próprio destino. A República que se vire.
Naquela ocasião, o presidente soube que o Supremo estava disposto a endossar um
pedido de impeachment, tornando difícil de o presidente da Câmara ignorá-lo.
O endosso do STF daria ao requerimento um peso diferente em relação àqueles outros mais de 100 aos quais Arthur Lira reservara, e ainda reserva, completa indiferença. Passados sete meses e faltando menos de meio ano para as eleições, a conjuntura é outra. Além de não comportar condições objetivas para processo de impedimento, a maior parte do Congresso está dominada pela entrega do manejo do Orçamento da União aos parlamentares do Centrão, hoje ampliado e majoritário.
Bolsonaro deixou
isso muito claro quando explicou a seus interlocutores nas internas no Palácio
que um dos fatores para a concessão do perdão a Silveira foi a certeza de que o
Legislativo não teria “força para reagir”. Força teria se houvesse vontade, mas
na ausência desta prevalece a fragilidade conveniente evidenciada pela via da
omissão. Há vários exemplos, mas, como o caso em tela é o de Daniel Silveira,
lembremos: há nove meses dorme no Conselho de Ética um pedido de abertura de
processo por quebra de decoro parlamentar.
Sem a sombra da
mais ínfima dúvida, o presidente da República é o principal responsável pelo
ambiente de confrontação institucional que se caracteriza pelo desequilíbrio
entre os três poderes, seja por ações ou omissões lastreadas no excesso. Mas a
alta ansiedade que assola o país tem razões que, além do Executivo, o
Legislativo e o Judiciário não poderiam desconhecer pela própria razão de suas
atribuições.
Há disputa onde a
Constituição manda que impere a equivalência das potências de cada um sob o
rito da harmonia. A necessidade de respostas firmes de um lado (o do
Judiciário) e a conveniência da cautela de outro (o do Legislativo) não
justificam o embarque na onda do presidente sem o devido senso tático sobre os
efeitos dessa ou daquela atitude. O critério serve para avanços e recuos.
O Supremo Tribunal
clama por respeito e reclama de ser desrespeitado. Tem razão, mas nem sempre
contribui para se dar ao respeito. Diferentemente do Legislativo e do
Executivo, é (ou seria) inerente à atividade do Judiciário ser o menos falante
fora dos limites dos autos, até pelo seu poder de dar a última palavra.
A despeito dos
méritos do embate que trava sozinho na defesa do estado de direito, o STF tem
se deixado atrair por aquilo que o ministro Luís Roberto Barroso chamou
recentemente de “fogueira das paixões políticas” para apontar um desvio
institucional que muitas vezes a Corte tem cometido, dando combustível ao
confronto. Com isso expõe o caráter autoritário do governo, mas chega aonde?
A nenhum lugar. Ou,
por outra, senta praça no centro do terreno do conflito, quando seu papel é o
de promover o entendimento conforme o imperativo da lei. O desmonte da Operação
Lava-Jato, a revisão de condenações anteriormente confirmadas por três
instâncias, ministros absolutamente parciais anulando decisões por alegada
ausência de imparcialidade, nada disso ajuda o STF a atrair a confiança da
sociedade. Pior, alimenta a desconfiança.
Reagir, sim, é
preciso, mas é imprescindível ter frieza e consciência sobre o papel de cada
um. Sob pena de cair numa dinâmica de extrapolações mútuas, cujo produto é a
instituição de um cenário de incivilidade geral com resultados nefastos ao bom
andamento dos trabalhos democráticos.
Publicado em VEJA
de 4 de maio de 2022, edição
nº 2787
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