O Globo
A farsa golpista encenada por Bolsonaro
chegou à página em que a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro estaria
condicionada ao exame por auditoria a ser contratada pelo partido de Valdemar
Costa Neto. Processo cuja legitimação dependerá da supervisão das Forças
Armadas, o Poder Moderador empossado pela leitura pervertida do Artigo 142 da
Constituição e, até outro dia, comandado pelo general candidato a vice na chapa
de Bolsonaro à reeleição.
A cama está feita.
Mais do que se considerarem, as Forças
Armadas agem como Poder da República. Poder da República especial, cujo alcance
moderador foi investido por ministros de tribunal superior que avalizaram
burocratas armados e ressentidos como interlocutores com status para formular
questões cujo pressuposto é a desonestidade da Justiça Eleitoral. Uma tocaia em
que, independentemente das respostas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a
tese de fraude restará provada.
A cama está feita.
As Forças Armadas que agem como Poder Moderador são as mesmas a serviço de minar a credibilidade do sistema eleitoral. A serviço, pois, dos interesses de Bolsonaro.
O ministro da Defesa já é outro. Não
importa quem seja o da vez. O governo é militar e não se move senão sob o
entendimento viciado — desde há muito explicitado — segundo o qual as Forças
Armadas seriam conjunto com poder interventor sobre Supremo Tribunal Federal e
Congresso Nacional. São generais zelosos dessa competência arbitrária — de
representantes de um Poder acima do equilíbrio republicano, com direito a
tutela sobre a concertação republicana — os que Luís Roberto Barroso e Luiz Fux
convidaram a participar do processo eleitoral.
É uma obviedade: militares não são
autoridades em matéria eleitoral; nem compõem um Poder, muito menos um
Moderador. O problema, porém, é maior. Há má intenção. Sob o que já chamei de 7
de Setembro permanente, um estado mesmo de ameaça golpista que sustenta a
instabilidade institucional como modo de o populismo bolsonarista prosperar, os
militares aceitaram o papel de fundação para que o arruaceiro lastreasse o
conspiracionismo com que espalha desconfiança contra uma das expressões
concretas da República.
Parêntese importante aqui. Não é à toa que
Bolsonaro ataca as culturas brasileiras de vacinação e eleição, ambas sólidas
manifestações de um país que chega igualmente a todos. Ambas, portanto, materializações
— manifestações de sucesso e fortaleza — da ideia de República. E ele é, antes
de tudo, um antirrepublicano.
O presidente da República é, sobretudo, um
mentiroso. Prometeu várias vezes — e há tempos não fala disso — apresentar
provas de que a eleição que venceu fora fraudada. Nunca o fez. Nunca foi punido
por criminalizar o TSE.
Prometeu também que sossegaria — aceitaria
— qualquer que fosse o resultado da votação no Parlamento sobre adoção do voto
impresso; pacificação em que só acreditou quem não compreende que a existência
competitiva de Bolsonaro se alimenta de choques e imprevisibilidades. Arthur
Lira nunca acreditou. Compôs o teatro. É sócio e está bom assim, bem servido
pela multiplicação de orçamentos secretos que o antirrepublicanismo favorece.
Escorado num Congresso amansado, Senado de
Pacheco incluído, por Orçamento da União sem teto para gastos de natureza
patrimonialista em ano eleitoral, Bolsonaro declara que “as Forças Armadas não
vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral”. Note-se como
evolui a corrosão da ordem constitucional. Convidadas — pelo TSE — a
“chancelar” a qualidade do sistema, algo que nunca lhes coube, as Forças
Armadas, orientadas pelo presidente e “bastante zelosas” de suas prerrogativas
assaltadas à Constituição, tomaram o que jamais lhes foi função e ora vão
deitadas na cama, de coturno e tudo, endossando previamente o que será acusação
de fraude na eleição de outubro.
A cama está feita e ocupada.
Bolsonaro é claro sobre como explorará a
armadilha que o Supremo levantou ingenuamente e a que o Supremo se oferece: “As
Forças Armadas não estão se metendo no processo eleitoral. Elas foram
convidadas”. Foram mesmo; convidadas a participar de comissão de transparência
— um erro imensamente apontado — e agora se projetam como habilitadas a não
validar o resultado de eleição.
Não validarão. Está dado. Ou não avançamos
no capítulo em que as Forças Armadas — sob gestão explícita de Bolsonaro —
plantam, na forma de perguntas diabólicas (em que a Justiça Eleitoral teria de
provar a lisura de seu sistema de votação), que um tribunal superior é
corrupto? Não se trata de outra coisa.
Desnecessário, a esta altura, será dizer
que ninguém ali — presidente à frente — está preocupado com a segurança das
eleições, como jamais esteve com a segurança da população a ser vacinada. Só a
auditoria de Valdemar poderá nos salvar.
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