terça-feira, 10 de maio de 2022

Raphael Di Cunto: Da irrelevância a mártir ‘fake’ do bolsonarismo

Valor Econômico

Deputado foi preso por ameaças, não por críticas ao STF

Já passou mais de um ano desde que o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) foi alçado a mártir do bolsonarismo na luta contra o Judiciário por proferir xingamentos e ameaças aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No vídeo de 19 minutos, ele, visivelmente alterado, vai da defesa da “depuração” feita pela ditadura militar e do espancamento de ministros ao escatológico, com menção ao órgão genital de um deles à sexualidade de outro. Na época, foi preso com aval de 364 de seus colegas de Câmara, que entenderam que ele rompeu ali os limites da crítica e do aceitável.

A lembrança do vídeo ficou, contudo, no passado. Nas últimas semanas, deputados das bancadas da bala e evangélica protagonizaram ato no Palácio do Planalto ao lado do presidente Jair Bolsonaro para defendê-lo. Os ruralistas, que pouco costumam tratar, como bancada, de temas que não são afeitos ao agronegócio, desta vez soltaram nota sem pé nem cabeça em defesa da “liberdade de expressão” e da Constituição para apoiar o ato fingindo que não era sobre isso.

 “Cercear a liberdade de expressão abre um precedente perigoso para os demais direitos básicos do cidadão. Medo não combina com democracia, que não combina com Parlamento. Chega de invasão de competência das outras instituições”, “enfatizou” a deputada federal Carla Dickson (União Brasil-RN), segundo divulgado no site oficial da Secretaria de Governo. “Presidente Bolsonaro nos encheu de orgulho ao defender a democracia em nosso país, protegendo a harmonia entre os Poderes ao conceder a liberdade às próximas gerações”, disse o deputado federal Capitão Alberto Neto (PL-AM), também segundo essa transcrição no site do governo.

Silveira ocupará vaga de titular na principal comissão da Câmara por decisão do PTB e foi eleito vice-presidente da Comissão de Segurança Pública numa sessão de desagravo contra sua condenação. Atos pelo país num domingo o exaltaram e reverberaram nova ameaça às eleições. Indultado pelo aliado-presidente, circulou festejado pelos corredores do Congresso e se recusou a ser notificado por oficiais de Justiça Fico imaginando como ele lidaria com esse tipo de desrespeito quando era policial.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi procurado por dezenas de deputados para que defendesse o colega. Não o fez. Repetiu a quem o procurou que eles já tinham esquecido o que Silveira falou dos ministros e comentou que, a cada crise causada pelo deputado, voltava a assistir ao vídeo com os ataques para manter em mente que “aquilo não é atividade parlamentar nem liberdade de expressão”. Está certo e a transcrição de parte dos impropérios é didática para lembrarmos que não, não é sobre liberdade de expressão:

“O que acontece, Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de filha da p... que tu tem, essa cara de vagabundo... várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte... quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra... Que que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não... eu só imaginei... ainda que eu premeditasse, não seria crime, você sabe que não seria crime... você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível... então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com um gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime. [...] Eu também vou perseguir vocês. Eu não tenho medo de vagabundo. Não tenho medo de traficante. Não tenho medo de assassino. Vou ter medo de 11, se não servem para porra nenhuma para esse país? Não, não vou ter. Só que eu sei muito bem com quem vocês andam, o que vocês fazem.”

O que os bolsonaristas hoje chamam de “cerceamento à liberdade de expressão” é, na prática, uma ameaça. Se um líder político se sente à vontade para intimidar um ministro da mais alta corte do país em público, imaginando que não sofrerá nenhuma punição, o que farão seus seguidores?

Reconhecer isso não esconde, também, o erro do Supremo ao exagerar a pena para prendê-lo em regime fechado. Isso só deu munição aos militantes que acusam a Corte de perseguição.

A polêmica também serviu a Silveira. O deputado alimenta a crise por dela beneficiar-se. Saiu de um papel completamente inexpressivo na Câmara para novo “mito” do bolsonarismo e projetou-se para a eleição ao Senado sem nunca ter exercido papel minimamente relevante na Câmara. Em três anos, sua única aparição foi ao gravar colegas de bancada na disputa entre os dois grupos do antigo PSL. Não participou de grandes debates, não relatou matérias importantes, não presidiu comissões nem liderou seu partido. Virou arma na guerra contra o Supremo, instituição que foi mais arredia aos encantos do bolsonarismo, e contra a própria realidade, ao desviar a atenção do que de fato preocupa o brasileiro (inflação, desemprego e sensação de piora da qualidade de vida).

O centrão e o golpe

Está claro que, se perder a eleição, Jair Bolsonaro contestará o resultado, seja numa tentativa de volta em 2026 à la Trump, seja por acreditar que poderá de fato continuar no poder ao dar um golpe com ajuda das Forças Armadas. O que não está claro, ainda, é como o mundo político lidará com isso em outubro.

Os presidentes da Câmara e do Senado dão, em público, sinais contraditórios. Rodrigo Pacheco (PSD-MG) adota postura mais pró-ativa, tuíta a favor da legitimidade das eleições e coloca na agenda reuniões com ministros do STF para mostrar publicamente o apoio. Arthur Lira (PP-AL), que é mais próximo de Bolsonaro, preferiu evitar declarações e reuniões públicas. Mas, aos ministros do STF que pedem seu amparo, garante que vai se opor a qualquer golpe e que as ameaças do presidente não passam de bravata. O “centro” não dará espaço para aventuras autoritárias nem os militares querem isso, minimiza.

A aposta em Brasília é que o “PIB” e os políticos do “Centrão” não darão suporte às aspirações autoritárias do presidente e que, sem eles, não há golpe possível. Lula (PT) não assusta a ponto de flertarem com um movimento que pode de novo acabar com o habeas corpus e cassar seus próprios mandatos.

 

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