Valor Econômico
Golpes militares tornaram-se raridade ao
redor do globo nas últimas décadas, mas isso não significa que as erosões e
quebras democráticas deixaram de existir. Agora elas se dão sobretudo por um
processo em que políticos e partidos eleitos legitimamente pelo voto popular
atacam princípios fundamentais da democracia para se manterem no poder
indefinidamente.
O autogolpe pode se dar por caminhos e
estratégias variadas, mas costuma ser um processo lento e gradual e que culmina
com a supressão da competição eleitoral e da oposição ao governo, dois pilares
básicos da democracia.
Exemplos não faltam. Só para ficarmos no
século 21, temos Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, Putin na Rússia, Chávez
e Maduro na Venezuela e a tentativa fracassada de Trump nos Estados Unidos.
Bolsonaro flerta com esse caminho ao questionar a lisura do processo eleitoral brasileiro e afirmar que pode não aceitar os resultados que sairão das urnas em outubro de 2022. Os constantes ataques ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal, a exaltação da ditadura militar e os discursos de ódio destinados a opositores ao longo de seu mandato e de sua vida política não deixam dúvidas que este é um presidente (e candidato à reeleição) que busca minar a confiança na competição eleitoral e na própria democracia. O maior exemplo do estrago feito por Bolsonaro é a incerteza da posse de qualquer candidato eleito nas eleições de outubro que não seja o atual presidente.
Numa democracia, há incerteza antes do
pleito sobre quem vencerá uma eleição, mas há certeza de que qualquer que seja
o candidato vencedor, os perdedores aceitarão pacificamente a derrota.
Bolsonaro tem feito intencionais esforços para que os eleitores cheguem às
urnas em outubro sem essa certeza.
Esse cenário é potencializado por um
contexto de polarização política, no qual o atual presidente adota um
comportamento radical e constantemente demonstra seu desprezo pela democracia e
suas instituições. Dado que esta conjuntura não deve se alterar até as eleições
deste ano, o que podemos esperar do comportamento dos políticos, dos eleitores
e do futuro da democracia brasileira?
Estudos conduzidos pelo cientista político
Milan Svolik mostram que em sociedades polarizadas, mesmo eleitores que se
dizem comprometidos com valores democráticos votam em políticos que apoiam
medidas autoritárias. Isto tende a ocorrer sobretudo se uma potencial mudança
de voto contrariar seus interesses econômicos, posições políticas ou lealdades
a uma liderança ou partido.
O abandono simultâneo de princípios
democráticos por políticos e eleitores pode resultar em crises políticas e
subversão do regime. Bolsonaro não precisa ter lido os trabalhos de Svolik para
calcular que a polarização lhe oferece a oportunidade de ameaçar a competição
democrática e não ser punido por eleitores que não estão dispostos a pagar o
preço de votar em um candidato ou partido que rejeitam. É esperado, então, que
continue a fomentar e apostar na tensão política, no conflito com outros
poderes, no ataque a adversários e no sentimento anti-PT.
Já os demais candidatos viáveis
eleitoralmente devem apresentar plataformas políticas mais próximas das
preferências do eleitor moderado, pois simplesmente defender a democracia não
parece ser a melhor estratégia para conquistar votos - como já não foi em 2018
e como sugerem as pesquisas de Svolik.
Minimizar os efeitos da polarização,
afinal, é o caminho que restou à elite política que faz oposição ao governo
Bolsonaro, a mesma que ajudou a alimentar o conflito político.
Uma vez definidas as candidaturas, muitos
eleitores enfrentarão um dilema: Votar numa chapa distante de suas preferências
imediatas - mas que não apresenta riscos à democracia - ou reeleger um
presidente que flerta com o autoritarismo? Alguns ficarão com a segunda opção,
pois não estão dispostos a abandonar suas preferências ideológicas ou suas
lealdades político-partidárias em prol de minimizar as chances de erosão do
sistema que temos hoje no país. Não sabemos exatamente quantos serão os
eleitores a fazerem essa escolha, mas o futuro da democracia no Brasil talvez
esteja nas pontas de seus dedos.
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