O Globo
O descontrole se espalhou. Ninguém mais tem
dúvidas, e a raiva é proporcional às certezas. Experimente emitir uma opinião:
logo será bombardeado pela fúria, servindo de escada para discursos, lacrações
e cancelamentos
Você não está indignado com a questão do xxxxxx?
Não é um absurdo o que está acontecendo em xxxxxx? Como se permite que xxxxxx
diga tal sandice? Que disparate! Que escárnio! Você não concorda? Hein? Hein?
(...)
Sim leitor, esses três pontos são o meu silêncio. Não, leitor, não tenho uma posição enfática sobre qualquer assunto, nem consigo exibir uma opinião convicta para cada questão que surge. Já foi o tempo. Estou praticando — aí, sim, com convicção — a cara de paisagem ao vivo, o arrã on-line. É o meu salva-vidas, agora que qualquer assunto do dia a dia é tratado como religião. Tanto faz se é discussão sobre a cor do cavalo branco ou um “bolacha ou biscoito”, tudo é resolvido com um dedo na cara ou uma voadora. Tô fora. O grande luxo nos anos 20 é o silêncio.
É normal que as pessoas sejam meio
descontroladas em algo que envolva deuses, políticos ou uma bola de futebol. O
problema é que o descontrole se espalhou pra todo lado. Ninguém mais tem
dúvidas sobre nada, e a raiva é proporcional às certezas. Experimente, leitor,
emitir uma opinião — qualquer uma — sobre um destino de férias ou uma gíria que
acabou de surgir: logo será bombardeado pela fúria alheia, involucrado em
questões político-existenciais e servindo de escada para discursos, lacrações e
cancelamentos. Os malucos fugiram do hospício e ainda apor cima conseguiram a
senha do wi-fi.
Diante disso, só nos resta o silêncio.
Basta uma observação sobre um sinal fechado
para que o motorista belicoso recite um discurso ensandecido sobre as ameaças
do comunismo, do gayzismo, do sei lá o quê ismo. Em outros tempos teria me dado
o trabalho de responder com fatos, mas hoje fatos são perigosos: melhor focar
na paisagem, emitindo um hum-hum a cada cinco minutos, para que ele não me
imagine indiferente aos seus argumentos.
A moça exaltada ouve um comentário sobre a
manchete do dia e já começa um TED Talk colérico sobre como malignos são os
indivíduos do meu gênero, raça e orientação sexual. Pelo que diz, o mundo seria
um paraíso de paz, harmonia e afeto sem pessoas como eu. Deve ter razão, mas já
percebi que é melhor não falar nada, mesmo a favor. O que eu disser será jogar
gasolina na fogueira e não quero acabar queimado. O sensato é ficar em
silêncio, ou melhor, com o hum-hum intermitente, para que o próprio silêncio
não pareça provocação.
O tuiteiro raivoso escreve um post sobre um
assunto inofensivo. Não se iluda, leitor, é uma armadilha. Assim que aparecer
seu comentário ele vai usá-lo como escada para alguma lição de moral, onde você
vai aparecer como vilão horrendo e ele, claro, como herói imaculado. O autor é
enfezado? Não comente, não retruque, apenas finja de morto.
A regra para a sobrevivência é: se na sua
frente há um desconhecido com veia saltada, lábios trêmulos ou Caps Lock
acionado, faça silêncio. Não tente argumentar, isso só vai piorar a situação.
Aperte o mute, capriche no mantra lá-lá-lá e evite o contato visual até o doido
aquietar.
É uma saída.
O efeito terapêutico do mutismo é quase milagroso: depois que você passa a não dar atenção à fúria alheia, é uma tranquilidade só, sobra tempo para cuidar da própria vida. Claro que o belicoso, a exaltada e o raivoso não concordam e devem ter muitos reparos ao que escrevi.
Um comentário:
Dia desses conheci um sujeito assim,bolsonarista,claro,eu agia justamente assim,ficava mudo.
Quando o assunto é futebol as pessoas levam na esportiva,a não ser os bandidos-organizados em torcida,mas quando o assunto é política,religião e comportamento,valha-me Deus!
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