terça-feira, 5 de julho de 2022

Leo Aversa: O silêncio nos tempos de cólera

O Globo

O descontrole se espalhou. Ninguém mais tem dúvidas, e a raiva é proporcional às certezas. Experimente emitir uma opinião: logo será bombardeado pela fúria, servindo de escada para discursos, lacrações e cancelamentos

Você não está indignado com a questão do xxxxxx? Não é um absurdo o que está acontecendo em xxxxxx? Como se permite que xxxxxx diga tal sandice? Que disparate! Que escárnio! Você não concorda? Hein? Hein?

(...)

Sim leitor, esses três pontos são o meu silêncio. Não, leitor, não tenho uma posição enfática sobre qualquer assunto, nem consigo exibir uma opinião convicta para cada questão que surge. Já foi o tempo. Estou praticando — aí, sim, com convicção — a cara de paisagem ao vivo, o arrã on-line. É o meu salva-vidas, agora que qualquer assunto do dia a dia é tratado como religião. Tanto faz se é discussão sobre a cor do cavalo branco ou um “bolacha ou biscoito”, tudo é resolvido com um dedo na cara ou uma voadora. Tô fora. O grande luxo nos anos 20 é o silêncio.

É normal que as pessoas sejam meio descontroladas em algo que envolva deuses, políticos ou uma bola de futebol. O problema é que o descontrole se espalhou pra todo lado. Ninguém mais tem dúvidas sobre nada, e a raiva é proporcional às certezas. Experimente, leitor, emitir uma opinião — qualquer uma — sobre um destino de férias ou uma gíria que acabou de surgir: logo será bombardeado pela fúria alheia, involucrado em questões político-existenciais e servindo de escada para discursos, lacrações e cancelamentos. Os malucos fugiram do hospício e ainda apor cima conseguiram a senha do wi-fi.

Diante disso, só nos resta o silêncio.

Basta uma observação sobre um sinal fechado para que o motorista belicoso recite um discurso ensandecido sobre as ameaças do comunismo, do gayzismo, do sei lá o quê ismo. Em outros tempos teria me dado o trabalho de responder com fatos, mas hoje fatos são perigosos: melhor focar na paisagem, emitindo um hum-hum a cada cinco minutos, para que ele não me imagine indiferente aos seus argumentos.

A moça exaltada ouve um comentário sobre a manchete do dia e já começa um TED Talk colérico sobre como malignos são os indivíduos do meu gênero, raça e orientação sexual. Pelo que diz, o mundo seria um paraíso de paz, harmonia e afeto sem pessoas como eu. Deve ter razão, mas já percebi que é melhor não falar nada, mesmo a favor. O que eu disser será jogar gasolina na fogueira e não quero acabar queimado. O sensato é ficar em silêncio, ou melhor, com o hum-hum intermitente, para que o próprio silêncio não pareça provocação.

O tuiteiro raivoso escreve um post sobre um assunto inofensivo. Não se iluda, leitor, é uma armadilha. Assim que aparecer seu comentário ele vai usá-lo como escada para alguma lição de moral, onde você vai aparecer como vilão horrendo e ele, claro, como herói imaculado. O autor é enfezado? Não comente, não retruque, apenas finja de morto.

A regra para a sobrevivência é: se na sua frente há um desconhecido com veia saltada, lábios trêmulos ou Caps Lock acionado, faça silêncio. Não tente argumentar, isso só vai piorar a situação. Aperte o mute, capriche no mantra lá-lá-lá e evite o contato visual até o doido aquietar.

É uma saída.

O efeito terapêutico do mutismo é quase milagroso: depois que você passa a não dar atenção à fúria alheia, é uma tranquilidade só, sobra tempo para cuidar da própria vida. Claro que o belicoso, a exaltada e o raivoso não concordam e devem ter muitos reparos ao que escrevi.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Dia desses conheci um sujeito assim,bolsonarista,claro,eu agia justamente assim,ficava mudo.

Quando o assunto é futebol as pessoas levam na esportiva,a não ser os bandidos-organizados em torcida,mas quando o assunto é política,religião e comportamento,valha-me Deus!