Valor Econômico
A permissão para a posse indiscriminada de
armas é o primeiro passo para a reinstauração da guerra privada
O Estadão informa: “Um relatório divulgado
na terça-feira pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela o aumento
de registros de pessoas autorizadas a possuir armas nos país nos últimos anos.
A flexibilização promovida pelo governo de Jair Bolsonaro fez subir em 474% o
número de cidadãos armados no território nacional.”
Essa proeza armamentista se desenrolou sem
contraposição das forças policiais e militares que, no Estado Moderno, deveriam
envergar as prerrogativas do monopólio da violência.
Os militares e policiais brasileiros
certamente não estudaram Thomas Hobbes nas Academias de Polícia ou Agulhas
Negras. Se tivessem passado os olhos no Leviatã talvez entendessem que a
proposta de armar a população significa dispensá-los das funções que a
Constituição lhes atribui. É o colapso do Estado Moderno, o naufrágio do
liberalismo político e a entrega da (des) ordem às milícias privadas.
Os bolsonaristas declararam guerra aos demais. Uma declaração de guerra apoiada no pretexto do antipetismo, do anticomunismo e anticristaníssimo travestido de pentecostalismo. Eles estão conclamando os aliados e - atenção!! - também os adversários para a guerra civil. Essa é forma que assumem as divergências sociais quando as regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie.
Observador das turbulências que assolaram a
sociedade inglesa no século XVII, Thomas Hobbes imaginou que o terror
disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela
concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a visão da sociedade em
que os homens conviviam pacificamente só pode surgir quando o Estado está
consolidado, em que todos estão submetidos às leis emanadas do Soberano.
Hobbes surpreende a sociedade dos
indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa,
soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes,
é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma
crise desencadeada pelas rivalidades espicaçadas pela truculência
individualista.
Por isso a suprema obrigação moral do
Estado é a de dar proteção ao cidadão. Hobbes considerava as forças armadas e a
polícia órgãos imprescindíveis do Estado moderno, a encarnação de sua essência.
Mas, a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de
controles e limites aos funcionários da segurança pública, determinados pela lei.
Essas funções devem ser exercidas com rigor para conter impulsos destrutivos
dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a
soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um
poder privado pela burocracia estatal encarregada da segurança pública. Não por
acaso, a proposta de liberação das armas vem acompanhada do desejo de
aparelhamento da Polícia Federal.
Nas repúblicas modernas, se é que temos
aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas
relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na
administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias
fundados na lei. O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo
central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do
monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo
sobre o outro.
O descumprimento do dever de punir pelo
ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada,
lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel. Os códigos da
cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra
o individualismo anarquista dos que se consideram com mais direitos e poderes.
As manifestações contra o STF são a prova
cabal de sua aversão à igualdade fundamental entre os cidadãos. O tom dessas
manifestações permite suspeitar que os bolsonaristas sentem-se ungidos,
superiores aos demais cidadãos.
As conquistas da modernidade das quais não se
pode abrir mão vêm sendo pisoteadas por quem imagina defendê-las com tropelias
dos homens das cavernas. Sequer cuidam de ocultar da sociedade, em cujo nome
dizem agir, o empenho com que laboram para tecer a corda em que enforcarão os
direitos e garantias individuais. Nas investidas do bolsonarismo, o Estado se
transforma num aparato administrativo desgovernado e despótico, numa caricatura
de si mesmo, num butim a ser dilapidado por ocupantes eventuais.
A permissão para a posse indiscriminada de
armas é o primeiro passo para a reinstauração da guerra privada e,
provavelmente, para o aparecimento de alguma forma de despotismo extralegal.
Incapacitado de garantir aos “indivíduos pacificados” proteção diante da
turbulência bárbaros, o Estado brasileiro se amesquinha e não consegue cumprir
o dever elementar de exercer o monopólio da violência.
Presa fácil das forças subterrâneas que
movem este processo, de consequências funestas, a sociedade se debate, sem
rumo. A impossibilidade de encontrar os meios adequados para conter a
violência, o medo da destruição e da morte engendram a fuga para as campanhas
de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de impotência,
travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros,
aliás, se acumula a energia que alimenta a onda de violência que atinge a
todos. Enquanto isso, deitam e rolam os que se beneficiam da desagregação do
aparelho de Estado desde o seu interior.
No bate-bumbo da controvérsia sobre a
interferência na Polícia Federal para frear as investigações sobre o
ex-ministro Milton Ribeiro e os pastores negocistas, Jair Bolsonaro e seus
apoiadores definiram claramente sua concepção das instituições e das
prerrogativas dos ocupantes de funções públicas. “Eu administro a República com
a minha família, como se fosse minha casa.” Essa é a síntese do pensamento
bolsonarista, de seus acólitos e servidores.
Paulo Guedes e sua trupe se empenham na
privatização da Eletrobras, Petrobras e Bancos Públicos. Bolsonaro& Família
foram mais expeditos: já realizaram a privatização do Estado.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Um comentário:
E Belluzzo sabe o que diz.
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