segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Carlos Pereira* - Ufa... A democracia foi salva!

O Estado de S. Paulo

O ‘salvador’ da democracia brasileira são suas sofisticadas instituições políticas

Escrevo do avião, em direção a Paris, onde vou viver pelos próximos seis meses como professor visitante da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Com a vitória de Lula em uma das mais competitivas eleições da história e a derrota de Bolsonaro, espera-se que finalmente acabe a ladainha delirante de que a democracia brasileira está sob risco. Afinal de contas, o “democrata” venceu e a nossa democracia foi salva, supostamente...ufa...por puro lance de sorte!

É bem possível que ainda persistam pesadelos persecutórios de que o “bolsonarismo” não morreu mesmo com a derrota eleitoral de seu líder. Mas esses tendem a se diluir, assim como se diluiu a crença de “golpe” atribuída ao impeachment de Dilma.

Desde a eleição surpreendente de um típico populista de extrema direita como Bolsonaro em 2018, muitos alardearam que a nova onda de autocratização que varreu vários países do mundo a partir de 2010 (Turquia, Polônia, Venezuela, EUA são alguns exemplos) teria definitivamente se instalado no Brasil.

O diagnóstico dominante entre a grande maioria dos cientistas e analistas políticos foi o de que a democracia brasileira enfrentaria retrocessos institucionais ou mesmo sucumbiria. Esta percepção foi reforçada pela postura adversarial de Bolsonaro que, em várias ocasiões, incluiu ameaças truculentas contra as instituições políticas, especialmente a Suprema Corte.

O equívoco desse argumento reside no fato de interpretar que tais ameaças seriam críveis. Como se Bolsonaro tivesse condições políticas para concretizá-las dada as restrições institucionais. É evidente que a democracia viveu sob estresse quase constante em seu governo, mas as instituições políticas e a sociedade brasileira foram muito mais fortes e resilientes a ponto de domesticarem Bolsonaro, inclusive forçando-o ao jogo do presidencialismo de coalizão. Na realidade, o Brasil não experienciou um único retrocesso institucional.

O sistema político brasileiro, composto de múltiplos pontos de veto institucionais e partidários, tem a virtude de evitar saídas extremas e punir, politicamente e/ou judicialmente, quem exagera. Da mesma forma como restringiu ameaças iliberais de Bolsonaro, também oferecerá fortes restrições ao novo governo Lula para que não volte a se comportar de forma desviante. O fato de nenhuma força política ter alcançado maioria no Legislativo é uma indicação de que Lula, se quiser governar, não vai poder ignorar a preferência mediana do Congresso.

A democracia brasileira, na realidade, tem sido “salva” não pela vitória de Lula, mas pelas interações de suas sofisticadas instituições políticas.

*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)

 

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