Cientista político sugere que petista expanda a frente democrática que o apoiou e faça ampla coalização
Por Marli Olmos / Valor Econômico
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva, terá que “inventar uma nova fórmula” de governo, que precisa ser
diferente daquela que usou nos mandatos anteriores, segundo o cientista
político Octavio Amorim Neto. Ele sugere que o petista expanda a política de
frente democrática que o apoiou na campanha eleitoral e faça um governo de
ampla coalizão.
Doutor em ciência política pela
Universidade da Califórnia e professor titular da Escola de Administração
Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de
Janeiro, Amorim diz que Lula “vai ter que ousar fazer um governo mais baseado
em acordos programáticos do que pragmáticos”. Essa seria também, diz, a melhor
resposta às acusações de corrupção que o cercam.
Amorim recorda a eleição de Tancredo Neves,
em janeiro de 1985, precedida por uma grande frente democrática. “Lula terá que
mudar o nome para Luiz Inácio Neves da Silva se quiser governar de forma
minimamente efetiva e enfrentar a nossa poderosa extrema-direita”. Com isso,
diz, o eleito patrocinaria o fortalecimento de um partido de centro-direita
democrático para dividir a direita e, assim, combater a extrema-direita do
bolsonarismo, “uma força que só se interessa pela polarização”.
Lula, diz Amorim, herda uma democracia “degradada”, com direitos e políticas públicas fundamentais “corroídos e deteriorados”. Para o professor, todo o planeta está de olho no resultado desta eleição porque “a democracia está em recesso no mundo”.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual será a melhor forma de Lula governar?
Octavio Amorim: Quando um
país está rachado a melhor opção é a união nacional ou uma ampla coalizão.
Pelas características do bolsonarismo, não haverá uma união nacional. Caberá
então a Lula buscar uma ampla coalizão.
Valor: E de que forma ele tem que construir esse
governo de coalizão?
Amorim: Mesmo com a
derrota de Bolsonaro, o bolsonarismo e a extrema-direita brasileira continuarão
fortes. Não apenas porque têm voto, mas porque têm muita influência no
Congresso, no Judiciário, nas polícias, nas Forças Armadas e em governos
estaduais. Isso significa, no meu entender, que Lula terá que expandir e
aprofundar a política de frente democrática que iniciou com a escolha de
Geraldo Alckmin como seu vice. E que depois seguiu no segundo turno, com Simone
Tebet (MDB), Ciro Gomes (PDT), setores progressistas do PSDB e vários grupos
sociais. Antigos rivais se uniram em torno da candidatura de Lula, como os
economistas que fizeram o Plano Real, empresários e forças sociais,
intelectuais e artistas. Vai ficar muito claro para Lula que ele vai ter que
inventar uma nova fórmula governativa, diferente da que usou no primeiro e
segundo mandatos e que o PT usou nos mandatos de Dilma Rousseff.
Valor: E como seria essa nova fórmula?
Amorim: Uma relação
muito pragmática e, em vários momentos, fisiológica, com partidos de
centro-direita e de centro. Acho que Lula vai ter que ousar fazer um governo de
coalizão muito mais baseado em acordos programáticos do que pragmáticos. Além
disso, essa seria a melhor resposta às acusações de corrupção que o cercam. Já
está claro que não haverá um mea culpa nem dele e nem do PT. O que resta fazer
para aplacar as críticas por conta dos escândalos de corrupção? É essa coalizão
em bases programáticas, mais à europeia, lembrando as grandes coalizões alemãs,
em que se publica um contrato. Uma grande coalizão baseada em programas, não em
trocas clientelistas.
Valor: E como, no seu entender, será o mecanismo de
interação com a frente democrática que apoiou Lula, sobretudo no segundo turno?
Amorim: Veja, a
eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, foi precedida por uma grande
frente democrática. E, ironicamente, o PT foi o único dos grupos democráticos
que não entrou explicitamente na frente de apoio ao Tancredo. Ironicamente,
Lula terá que retomar o espírito de Tancredo, ainda que eles nunca tenham se
entendido muito bem. Lula vai ter que mudar o nome para Luiz Inácio Neves da
Silva se quiser governar de forma minimamente efetiva e se quiser enfrentar a
nossa poderosa extrema-direita. Nesse sentido, terá que patrocinar o
fortalecimento de um partido de centro-direita democrático. Não sei qual será.
Se será o PSD de Kassab ou o MDB de Temer, agora com Simone Tebet como sua
líder. Mas Lula terá que ser muito proativo para fortalecer a centro-direita
democrática para dividir a direita, que hoje é dominada pelo bolsonarismo. Terá
que isolar e enfraquecer a extrema-direita, que vai acossá-lo durante todo seu
terceiro mandato.
Valor: Como o senhor avalia a vitória de Tarcísio de
Freitas no Estado de São Paulo?
Amorim: Tarcísio será
o grande bastião do bolsonarismo. Além de vencer no Congresso, a direita venceu
em Estados muito importantes - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse
sentido, Bolsonaro sai muito fortalecido.
Valor: E qual será o curso do bolsonarismo a partir de
agora? E o da direita democrática?
Amorim: O
bolsonarismo tem sido o grande algoz da direita democrática. Bolsonaro derrotou
todos aqueles que o desafiaram no campo da direita. Para começo de conversa,
Wilson Witzel, que não existe mais, João Doria e Rodrigo Maia. E passou a ter
essa aliança muito forte com o centrão, que descobriu um líder do seu campo
ideológico. Polarização interessa profundamente ao bolsonarismo, que não viceja
fora de um ambiente polarizado e radicalizado. Bolsonaro é um líder
carismático, não tem partido, e a grande pergunta é: o bolsonarismo conseguirá
sobreviver nas próximas décadas sem Bolsonaro? Não posso prever. Mas há uma
grande oportunidade para a direita brasileira se organizar partidariamente em
torno do bolsonarismo. E sobretudo agora que tem uma bancada parlamentar
considerável. O problema é que a essência do bolsonarismo é anti-partidária.
Será muito difícil a institucionalização do bolsonarismo por meio da criação de
um grande partido de direita, porque o bolsonarismo visceralmente é um
anti-partido e também anti Poder Legislativo.
Valor: Que outras lições essa eleição nos deixa?
Amorim: A ideia de
que forças liberais e tradicionais partidos de centro-direita poderiam moderar
Bolsonaro fracassou. Desde 1985, todos os outros presidentes e seus partidos se
moderaram quando chegaram ao Executivo. O PT era um partido de esquerda e virou
de centro-esquerda. Já o PSDB começou como de centro-esquerda e ao final do
segundo mandato de Fernando Henrique era de centro-direita. O mesmo se aplica a
José Sarney e a Fernando Collor de Mello. Sarney havia sido um homem do regime
militar, depois integrou a frente liberal, e tornou-se o vice de Tancredo.
Quando chegou à Presidência fez um governo bastante moderado. E Collor, outro populista
de extrema-direita eleito em 1989, tentou, ao final do governo, ser um
presidente estilo tradicional, que vestia o guarda-roupa republicano. Isso não
aconteceu com Bolsonaro. Ele e o bolsonarismo começaram na extrema-direita e
continuam na extrema-direita.
Valor: O que o Brasil perdeu no governo Bolsonaro?
Amorim: Perdeu com a
degradação da democracia e a retórica pública. O presidente é hoje o principal
promotor desse baixíssimo nível de retórica pública. Veja os discursos dele.
Não é uma degradação simbólica, é real. Sem falar o que tantas pessoas já
disseram sobre o desmonte de políticas públicas e de direitos fundamentais para
o regime democrático que emergiu em 1985 e que depois se constitucionalizou com
a carta Magna de 1988. Temos hoje uma democracia degradada. E temos direitos e
políticas públicas fundamentais corroídos e deteriorados.
Valor: E em relação à política externa?
Amorim:Esse é um tema que
pouco interessa ao eleitor, mas que é fundamental para as elites e para os
governos brasileiros. O Brasil nunca esteve tão isolado. E é impressionante que
setores muito relevantes das elites políticas e econômicas não tenham
preocupação nenhuma, estejam, muito confortáveis com o isolamento internacional
do Brasil. Um dia isso vai cobrar o preço.
Valor: E Lula conseguirá resgatar esse isolamento?
Amorim: Em algumas
áreas, sim. Na política externa, por exemplo, pode ter ganhos muito rápidos. Em
outras áreas vai ser mais difícil. É o caso do meio ambiente. O meio ambiente
depende de estrutura burocrática, de recursos humanos muito qualificados. E
essa estrutura e recusos foram muito degradados nos últimos quatro anos. Não
será de uma hora para outra. Além disso, Bolsonaro ganhou muitos aliados. É
gente poderosa e que age de forma muito subterrânea ao destruir as políticas
ambientais. Não será fácil em algumas áreas a reconstrução do aparato estatal e
das políticas governamentais. Quando o presidente da República ofende a esposa
do chefe de Estado francês isso tem um efeito devastador e que não aparece na
hora. Que o eleitorado popular não se interesse por essas questões é
compreensível. Mas que setores das elites, gente com escolaridade e que viaja
muito não perceba como isso é desastroso para o país, não.
Valor: Como especialista em Forças Armadas, como o
senhor avalia as tentativas de politização dos militares no governo Bolsonaro?
Amorim: A situação
das Forças Armadas hoje é muito complicada. Mas quero destacar a natureza da
estratégia das Forças Armadas para lidar com sua politização e militarização durante
o governo Bolsonaro. Tudo isso pode ser definido em duas palavras: silêncio e
ofuscação. Silêncio porque nunca houve uma manifestação pública das forças pela
sua cadeia de comando tal qual houve nos Estados Unidos pelo general Milley
(Mark Milley) logo depois da tentativa de golpe em 6 de janeiro de 2021. Quando
Bolsonaro assume e nomeia vários militares para o Ministério e para cargos
civis se dizia que a maioria desses militares era da reserva, eles não
representavam as Forças Armadas. Mas, depois, apareceram os da ativa no
governo. O ministro Paulo Sérgio de Oliveira, da Defesa, que há até pouco tempo
era um oficial da ativa e membro do alto comando do Exército, não trata de
assuntos de defesa e especializou-se em ser comentarista do sistema de votação
eletrônico brasileiro. É o Ministério da Defesa nesse esforço do Bolsonaro de
criticar e deslegitimar nosso excelente sistema de votação eletrônico. Há uma
associação óbvia entre militares, Forças Armadas e Bolsonaro e como as Forças
Armadas respondem às críticas: pelo silêncio, que interessa a Bolsonaro, ou
pela ofuscação permanente.
Valor: E qual será o futuro das Forças Armadas no
governo Lula?
Amorim: A
desmilitarização do governo e a nomeação de um civil para chefiar o Ministério
da Defesa serão as tarefas mais fáceis. Isso tudo está amparado nas
prerrogativas constitucionais do Presidente da República. O mais difícil, para
Lula, vai ser a reconstituição de todo o esforço feito entre 1999 e 2015 para
estabelecer o controle civil sobre os militares. E o maior desafio de todos
será a criação de uma carreira civil dentro do Ministério da Defesa, que é
objeto de grande oposição por parte das Forças. Essa carreira civil foi
prometida na Estratégia Nacional de Defesa de 2008. Já se passaram quase 15 anos.
Minha grande dúvida é se Lula vai ter a vontade política para enviar um projeto
de lei para o Congresso estabelecendo essa carreira civil e também apoiar a
emenda constitucional proposta pela deputada Perpétua Almeida (PCdoB), que
proíbe militares da ativa de exercer cargos.
Valor: De que forma a eleição no Brasil influencia a
política na América Latina?
Amorim: Por razões
negativas, hoje o Brasil tem uma influência muito grande em todo o mundo. Há
uma preocupação grande com a situação do Brasil, não por razões brasileiras,
mas globais. A democracia está em recesso no mundo. Até uma democracia
tradicional como a americana está enfraquecida e degradada por conta de forças
autoritárias como Trump e agora o Partido Republicano dominado pelo trumpismo.
Também há um governo pós fascista na Itália. A extrema-direita teve um
desempenho muito bom na última eleição presidencial portuguesa. Até o Reino
Unido, que não tem uma extrema-direita como a francesa ou italiana, está
combalido porque tem uma extrema-direita na área econômica representada por
esse curto governo de Liz Truss, que é uma força muito disruptiva e que gera
muita instabilidade na política britânica, outra democracia muito tradicional.
Então, o resultado no Brasil poderá ter um impacto relevante para a situação da
democracia do ponto de vista global. O mundo está de olho no Brasil.
Valor: A religião continuará envolvida com a política?
Amorim: Vai continuar
por uma razão estrutural: o crescimento dos evangélicos no Brasil. Nas próximas
décadas, com o número de evangélicos tão grande quanto o de católicos, o Brasil
terá uma sociedade muito heterogênea do ponto de vista religioso. Os
evangélicos são muito mais engajados politicamente do que os católicos e, na
versão brasileira, evangélicos e pentecostais são extremamente conservadores e
em alguns setores muito tolerantes com práticas autoritárias. O bolsonarismo
conseguiu reestruturar os termos da competição política no Brasil. Antes a
competição política era majoritariamente em torno de temas socioeconômicos.
Hoje esses temas continuam muito importantes. Mas dividem o mesmo espaço com
temas que dizem respeito a estilo de vida, a valores e a questão da família.
Valor: E quanto à democracia? O tema apareceu como
questão importante para o eleitor, segundo as pesquisas de opinião. Qual é a
sua visão sobre isso?
Amorim: A questão é
relevante. Mas cada setor tem uma interpretação distinta do que é democracia.
Pergunta para o bolsonarista. Ele quer total liberdade para fazer o que quer e
isso não é democracia. Democracia implica limites ao que cada um pode fazer e
do ponto de vista institucional esse limite se expressa no sistema de separação
de poderes. Por isso, o Poder Judiciário é tão importante. É o último limite
que existe na democracia. Se o Poder Executivo é tomado por forças como o
bolsonarismo e, agora, com o Congresso com maioria simpática à agenda
bolsonarista, o último limite é o Judiciário. E não à toa desde 2021 quando
Bolsonaro mais ou menos resolveu sua situação no Congresso ele voltou seus
canhões para o STF e para o TSE.
Valor: Lula já disse sobre a dificuldade de se formar
líderes políticos no país. Ele próprio não disputará mais eleições. Quais as
chances de formação de novas lideranças a partir desta eleição?
Amorim: A renovação de forças será inevitável no Brasil porque a geração que fundou a nova república está se aposentando. Há o desafio da renovação do PT, que tem que encaminhar a questão da sucessão de Lula o quanto antes para continuar um partido competitivo. O grande desafio é: que líder e que partido vão encarnar a nova centro-direita democrática, que vai ser fundamental para Lula? Há vários candidatos. Eu não descartaria Romeu Zema (Novo) se mover para a centro-direita. Afinal, ele é o governador do segundo maior Estado do país. Minas é o Estado que define eleições presidenciais. E não podemos esquecer a tradição de conciliação mineira, que está combalida, tem sido esquecida, mas não morreu. Se Zema fizer esse cálculo, a melhor coisa para um político com o perfil dele e o de Minas, será a moderação e não a identificação plena com o bolsonarismo que não muda de posição. Bolsonarismo é extrema-direita e continuará na extrema-direita. Por mais surpreendente que possa parecer agora eu não descartaria a moderação de Zema. Ele poderá ser uma surpresa positiva para as perspectivas das forças democráticas nos próximos anos. E até Claudio Castro, no Rio, que, como Minas, tem uma situação fiscal muito frágil. Para irem bem esses Estados vão depender da cooperação com o governo federal. E poderão surgir outras lideranças, como Simone Tebet. Ela brilhou na eleição. E acho que seria ótimo se Lula apostasse nela.
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