O Estado de S. Paulo
O País está dividido, mas que os que vibraram e marcharam unidos pela democracia ao som de ‘Vai Passar’ inspirem nosso sistema político
Em 1978, quando o Brasil vivia sob uma
ditadura que prendia, arrebentava, torturava e censurava, o professor Fernando Henrique Cardoso lançou uma candidatura de
protesto. Sua campanha ao Senado Federal reuniu cantores, escritores, estrelas
e astros de novelas da TV, num prenúncio da vibração festiva da democracia que
estava por vir.
Chico Buarque esteve entre os artistas que apoiaram Fernando Henrique em 1978, chegando a compor o jingle da campanha. Em 1984, Chico lançou uma de suas inúmeras obras-primas: o samba-enredo “Vai Passar”, que se tornou hino da redemocratização e da campanha das Diretas-Já. Em 1985, “Vai Passar” foi o jingle de uma nova campanha de Fernando Henrique, desta vez à prefeitura de São Paulo. A letra foi adaptada: “Vai ganhar, Fernando Henrique o voto popular...” A partir de 1989, Chico Buarque se tornou um apoiador do presidente que foi eleito hoje, Luiz Inácio Lula da Silva.
Ainda em 1978, Lula apoiou Fernando
Henrique ao Senado. É famosa a foto em que ambos, respectivamente barbudo e
cabeludo, distribuem panfletos à frente de uma fábrica no ABC paulista. Eduardo
Suplicy fazia parte da chapa de Fernando Henrique, concorrendo a uma vaga
na Assembleia Legislativa, ambos pelo MDB – partido famoso pela resistência
heroica à ditadura. O deputado federal na mesma chapa seria José Serra, mas os
militares o consideravam “comunista” demais, até mais que Fernando Henrique e
Lula, e barraram sua candidatura.
Serra contou-me essa história numa
entrevista em 2019. Entre 1964 e 1978 ele não podia nem sequer pisar no país.
Nas poucas vezes em que veio visitar a família, veio clandestinamente,
hospedando-se em instalações da igreja católica. Em nossa conversa, Serra
cantarolou hinos do antigo Centro Popular de Cultura, onde se encenavam peças
teatrais de esquerda. Em entrevista em 2020, a atriz Regina Duarte,
frequentadora dos CPCs, disse-me que Serra era um excelente ator e cantor – e,
em sua avaliação, um galã.
Todos os personagens acima foram
protagonistas da redemocratização. Com exceção de Regina Duarte, todos ficaram
do mesmo lado nesta eleição presidencial. Seus discípulos também. Os
economistas do Plano Real e os intelectuais do Instituto Fernando Henrique
declararam voto em Lula. Simone Tebet liderou a direita democrática que apoiou
o petista, resgatando a história heroica de seu MDB. Como noticiou a coluna
do Estadão, ela emerge, ao lado de Eduardo Leite e Raquel Lyra,
recém-eleitos governadores, entre as lideranças da direita altiva que se recusa
a roer os ossos que sobraram do festim bolsonarista.
Toda eleição implica num rearranjo de
forças. O Brasil tem três campos políticos. A esquerda, a direita tradicional e
o bolsonarismo. Nesta eleição, a esquerda se aliou à direita tradicional
– Lula e Tebet, vestidos de branco durante a reta final da
campanha eleitoral – e derrotou Jair
Bolsonaro. Cada campo, no entanto, terá cartas boas para o novo
jogo. Bolsonaro elegeu vários senadores e contabilizou uma vitória espetacular
com Tarcísio de Freitas, um ex-ministro seu, no Estado mais rico do país. O
bolsonarismo e a direita tradicional disputarão, nos próximos quatro anos, a
hegemonia no campo das direitas.
Não sejamos ingênuos. O Brasil está
dividido, e o período e dois meses entre o dia de hoje e a posse de Lula será
desafiador. Um impasse, no entanto, não interessa a ninguém. Não interessa aos
empresários, ao mercado financeiro nem ao agronegócio. Por uma razão simples.
Qualquer desfecho que não seja a aceitação plena do resultado das eleições,
federal e estaduais, transforma o Brasil numa “república de bananas”. Uma
economia sofisticada e exportadora não pode se dar ao luxo de parar por lendas
sobre urnas eletrônicas.
O Brasil conta com uma classe política
madura para pilotar a transição. O apoio de José Sarney a Lula – o político
habilidoso que pilotou a transição da ditadura para a democracia, em
circunstâncias mais delicadas que a de hoje – é emblemático. Os cumprimentos de
líderes internacionais, de Joe Biden a Marcelo Rebelo de Souza, de Emmanuel
Macron a Olaf Scholz --tornam qualquer confusão digna de vergonha mundial.
Não é certo que a “frente ampla” que apoiou
Lula participe do próximo governo. Direita e esquerda não precisam estar do
mesmo lado, e nem é desejável que estejam. Há fortes divergências na área
econômica, apesar de similaridades nos dois grandes consensos brasileiros, o
resgate social e a preservação ambiental – como mostraram os programas
eleitorais de Lula (centro-esquerda) e Tebet (centro-direita). A geração 78,
que redundou em tucanos, peemedebistas e petistas, se afastou e se aproximou
várias vezes. Foram em épocas diferentes adversários, inimigos, aliados e
amigos – como é comum nas idas e vindas da política. É gente que se conhece há
muito tempo e pode ajudar na pacificação do país.
O importante, como destacou o Estadão em
editorial, que haja uma volta ao debate civilizado. Como o que vislumbramos no
Brasil entre 1994 e 2012 – não por acaso, o período mais próspero e inclusivo
da redemocratização. O presidente eleito Lula prometeu isso à boca da urna.
Devemos cobrar dele o cumprimento desta promessa mais que qualquer outra. Neste
momento, será fácil reconhecer os verdadeiros patriotas. Serão aqueles capazes
de esfriar ânimos, trazer racionalidade à conversa, governar com alianças ou
fazer oposição inteligente.
O País está dividido, mas talvez o exemplo
da geração de 78 traga lições à situação e às duas oposições. Que os que
vibraram e marcharam unidos pela democracia ao som de “Vai Passar” inspirem
nosso sistema político – e que seja possível a volta a uma conversa adulta
sobre os problemas do país, que é o que caracteriza as democracias dignas do
nome. Disso depende nosso futuro.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
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