segunda-feira, 31 de outubro de 2022

João Gabriel de Lima - A vitória da geração 78

O Estado de S. Paulo

O País está dividido, mas que os que vibraram e marcharam unidos pela democracia ao som de ‘Vai Passar’ inspirem nosso sistema político

Em 1978, quando o Brasil vivia sob uma ditadura que prendia, arrebentava, torturava e censurava, o professor Fernando Henrique Cardoso lançou uma candidatura de protesto. Sua campanha ao Senado Federal reuniu cantores, escritores, estrelas e astros de novelas da TV, num prenúncio da vibração festiva da democracia que estava por vir.

Chico Buarque esteve entre os artistas que apoiaram Fernando Henrique em 1978, chegando a compor o jingle da campanha. Em 1984, Chico lançou uma de suas inúmeras obras-primas: o samba-enredo “Vai Passar”, que se tornou hino da redemocratização e da campanha das Diretas-Já. Em 1985, “Vai Passar” foi o jingle de uma nova campanha de Fernando Henrique, desta vez à prefeitura de São Paulo. A letra foi adaptada: “Vai ganhar, Fernando Henrique o voto popular...” A partir de 1989, Chico Buarque se tornou um apoiador do presidente que foi eleito hoje, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ainda em 1978, Lula apoiou Fernando Henrique ao Senado. É famosa a foto em que ambos, respectivamente barbudo e cabeludo, distribuem panfletos à frente de uma fábrica no ABC paulista. Eduardo Suplicy fazia parte da chapa de Fernando Henrique, concorrendo a uma vaga na Assembleia Legislativa, ambos pelo MDB – partido famoso pela resistência heroica à ditadura. O deputado federal na mesma chapa seria José Serra, mas os militares o consideravam “comunista” demais, até mais que Fernando Henrique e Lula, e barraram sua candidatura.

Serra contou-me essa história numa entrevista em 2019. Entre 1964 e 1978 ele não podia nem sequer pisar no país. Nas poucas vezes em que veio visitar a família, veio clandestinamente, hospedando-se em instalações da igreja católica. Em nossa conversa, Serra cantarolou hinos do antigo Centro Popular de Cultura, onde se encenavam peças teatrais de esquerda. Em entrevista em 2020, a atriz Regina Duarte, frequentadora dos CPCs, disse-me que Serra era um excelente ator e cantor – e, em sua avaliação, um galã.

Todos os personagens acima foram protagonistas da redemocratização. Com exceção de Regina Duarte, todos ficaram do mesmo lado nesta eleição presidencial. Seus discípulos também. Os economistas do Plano Real e os intelectuais do Instituto Fernando Henrique declararam voto em Lula. Simone Tebet liderou a direita democrática que apoiou o petista, resgatando a história heroica de seu MDB. Como noticiou a coluna do Estadão, ela emerge, ao lado de Eduardo Leite e Raquel Lyra, recém-eleitos governadores, entre as lideranças da direita altiva que se recusa a roer os ossos que sobraram do festim bolsonarista.

Toda eleição implica num rearranjo de forças. O Brasil tem três campos políticos. A esquerda, a direita tradicional e o bolsonarismo. Nesta eleição, a esquerda se aliou à direita tradicional – Lula e Tebet, vestidos de branco durante a reta final da campanha eleitoral – e derrotou Jair Bolsonaro. Cada campo, no entanto, terá cartas boas para o novo jogo. Bolsonaro elegeu vários senadores e contabilizou uma vitória espetacular com Tarcísio de Freitas, um ex-ministro seu, no Estado mais rico do país. O bolsonarismo e a direita tradicional disputarão, nos próximos quatro anos, a hegemonia no campo das direitas.

Não sejamos ingênuos. O Brasil está dividido, e o período e dois meses entre o dia de hoje e a posse de Lula será desafiador. Um impasse, no entanto, não interessa a ninguém. Não interessa aos empresários, ao mercado financeiro nem ao agronegócio. Por uma razão simples. Qualquer desfecho que não seja a aceitação plena do resultado das eleições, federal e estaduais, transforma o Brasil numa “república de bananas”. Uma economia sofisticada e exportadora não pode se dar ao luxo de parar por lendas sobre urnas eletrônicas.

O Brasil conta com uma classe política madura para pilotar a transição. O apoio de José Sarney a Lula – o político habilidoso que pilotou a transição da ditadura para a democracia, em circunstâncias mais delicadas que a de hoje – é emblemático. Os cumprimentos de líderes internacionais, de Joe Biden a Marcelo Rebelo de Souza, de Emmanuel Macron a Olaf Scholz --tornam qualquer confusão digna de vergonha mundial.

Não é certo que a “frente ampla” que apoiou Lula participe do próximo governo. Direita e esquerda não precisam estar do mesmo lado, e nem é desejável que estejam. Há fortes divergências na área econômica, apesar de similaridades nos dois grandes consensos brasileiros, o resgate social e a preservação ambiental – como mostraram os programas eleitorais de Lula (centro-esquerda) e Tebet (centro-direita). A geração 78, que redundou em tucanos, peemedebistas e petistas, se afastou e se aproximou várias vezes. Foram em épocas diferentes adversários, inimigos, aliados e amigos – como é comum nas idas e vindas da política. É gente que se conhece há muito tempo e pode ajudar na pacificação do país.

O importante, como destacou o Estadão em editorial, que haja uma volta ao debate civilizado. Como o que vislumbramos no Brasil entre 1994 e 2012 – não por acaso, o período mais próspero e inclusivo da redemocratização. O presidente eleito Lula prometeu isso à boca da urna. Devemos cobrar dele o cumprimento desta promessa mais que qualquer outra. Neste momento, será fácil reconhecer os verdadeiros patriotas. Serão aqueles capazes de esfriar ânimos, trazer racionalidade à conversa, governar com alianças ou fazer oposição inteligente.

O País está dividido, mas talvez o exemplo da geração de 78 traga lições à situação e às duas oposições. Que os que vibraram e marcharam unidos pela democracia ao som de “Vai Passar” inspirem nosso sistema político – e que seja possível a volta a uma conversa adulta sobre os problemas do país, que é o que caracteriza as democracias dignas do nome. Disso depende nosso futuro.

*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa

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