Correio Braziliense
Os grandes problemas nacionais são objetivos,
estão na esfera da realidade, impactada pela globalização, pelas novas
tecnologias, pelas novas formas de produção, pelos novos laços sociais
Dono de um inédito terceiro mandato, com
59.563.912 votos (50,83% dos votos válidos), contra 57.675.427 votos (49,17%
dos votos válidos) de Jair Bolsonaro (PL), o presidente eleito Luiz Inácio Lula
da Silva tem diante de si um desafio muito, mas muito maior mesmo, do que
aquele que enfrentou ao ser eleito pela primeira vez, em 2002. Naquela época,
seu governo sinalizava avanço no combate à pobreza, num ambiente saudável de
reorganização da vida institucional e econômica do país, que herdou do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, não. Está diante de uma ruptura
com as políticas de governo em curso, protagonizada pelo reacionarismo do atual
presidente, que é o primeiro a não se reeleger, desde 1998, quando foi
instituída a reeleição.
A vitória de Lula foi muito apertada, obtida às 19h56 de ontem, quando 98,91% das urnas já estavam apuradas e era impossível reverter o resultado, apurados 117.305.567 votos válidos. Foram registrados 1.751.415 votos brancos (1,43%) e 3.889.466 votos nulos (3,16%). A abstenção chegou a 20,90%. Destaca-se a atuação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, que matou no peito toda a turbulência do dia da votação, sobretudo a atuação de setores das forças policiais com claro propósito de dificultar o acesso às urnas da população mais propensa à votar no petista. No final do dia, minimizou as ocorrências e proclamou o resultado oficial.
Essa vitória apertada de Lula não tisna a
envergadura da mudança que significa, porque praticamente retoma o fio da
história interrompido com a impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT),
com duas preocupações: a centralidade das políticas de combate à pobreza e a
pacificação do país. “Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a
discórdia. É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade
rompidos pela propagação criminosa do ódio. A ninguém interessa viver em um
país dividido, em permanente estado de guerra”, disse.
Embora o silêncio de Bolsonaro seja uma
preocupação, o establishment político reagiu de forma muito positiva. O
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), logo após o resultado, reconheceu a
vitória de Lula e defendeu a pacificação do país. O presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi na mesma linha. Bolsonaro, ao não reconhecer
imediatamente a vitória de Lula, sinaliza dificuldades na transição para o novo
governo. Entretanto, Lula conta com amplo apoio das instituições e
solidariedade internacional muito robusta, simbolizada pelo rápido
reconhecimento de sua vitória pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
Bolsonaro obteve uma grande vitória
eleitoral em São Paulo, com a eleição de Tarcísio de Freitas. Mas não levou o
Rio Grande do Sul, com a vitória do tucano Eduardo Leite, o primeiro
ex-governador do estado a ser eleito pela segunda vez, que derrotou seu aliado
de primeira hora, o ex-ministro Onyx Lorenzoni. Com a grande votação e aliados
importantes nos governos dos três maiores estados do Sudeste — São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais —, continua sendo a segunda maior liderança do país.
Sua manifestação sobre o resultado das eleições, aguardada para hoje, é muito
importante para a normalidade do processo democrático.
Problemas objetivos
A escolha feita pelo povo nas urnas precisa
ser respeitada. Isso depende do candidato derrotado, mas sobretudo da força das
instituições e da maioria da sociedade, que deseja a volta à normalidade da
vida nacional. Teremos um período de transição de dois meses, no qual a
cooperação entre o atual governo e a equipe de transição do presidente eleito
será fundamental. As sequelas da disputa eleitoral serão duradouras, mas as
feridas precisam ter cicatrização acelerada. A sociedade sangra com as disputas
entre parentes e amigos, divergências que perdurarão, mas não comportam
inimizades e violências.
A democracia tem dois pilares: a
alternância de poder e o direito ao dissenso das minorias. É preciso
respeitá-los, de um lado pelos que hoje estão no poder, de outro pelos que vão
assumi-lo. Diante de uma grande encruzilhada, o país tem um longo caminho a
seguir. Não se trata apenas do bem-estar imediato, por todos almejado, mas de
construir um futuro melhor para as futuras gerações, diante de um mundo no qual
as mudanças ocorrem numa velocidade que muitos não conseguem acompanhar.
Num cenário desses, a reação de muitos,
quiçá até da maioria, às vezes é tentar congelar o tempo ou fazê-lo andar para
trás. Isso não é possível. As ideias reacionárias vêm de um passado imaginário,
no qual os velhos problemas são apagados, como se não fossem os trilhos que nos
trouxeram às mazelas atuais. Entretanto, os problemas que estão na esfera do
comportamento, dos costumes, da tradição, das religiões são de ordem subjetiva.
Os grandes problemas nacionais são de ordem
objetiva, estão na esfera das nossa realidade, impactada pela globalização da
economia, pelas novas tecnologias, pelas novas formas de produção, pelos novos
laços sociais. Nossa integração à economia mundial perde complexidade em termos
de balança comercial. Nossa vocação natural de produtor de commodities de
minérios e alimentos na divisão internacional do trabalho é uma vantagem
estratégica, porém não basta para assegurar o nosso pleno desenvolvimento.
Temos graves deficiências de infraestrutura
e é flagrante a deterioração do nosso padrão de urbanização. As abissais
desigualdades sociais são agravadas pela precarização do trabalho e por nosso
secular racismo estrutural. Velhas práticas políticas patrimonialistas,
clientelísticas e fisiológicas, em contradição com o Estado democrático de
direito e suas instituições, enfraquecem o nosso sistema político e corrompem
os partidos. Ninguém enfrenta essas tarefas sozinho.
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