Folha de S. Paulo
Legado institucional de um país é
importante preditor da qualidade institucional futura
Ao saber da Proclamação da República no
Brasil, Rojas Paúl, então presidente da Venezuela exclamou: "Foi-se a única república da América do Sul".
Paradoxo? Não! Quando se fala por aqui de venezuelização,
observamos grande desconhecimento da história.
Para ficarmos apenas na questão da liberdade de expressão — que é central na agenda pública atual — provavelmente o Brasil seria o país onde ela era mais efetiva na região. Joaquim Nabuco não exagerava quando disse que dom Pedro 2º era orgulhoso de sua própria tolerância. Paúl tinha isto em mente quando fez aquela declaração; e também o funcionamento ininterrupto do Parlamento imperial desde sua instalação.
O legado institucional de um país é
importante preditor da qualidade institucional futura. Dahl, o mais importante
teórico da democracia no século 20, analisou a democratização como um movimento
paulatino em duas direções: inclusão e liberalização/institucionalização.
Assim, o jogo da democracia evoluiu no sentido de inclusão de todos os adultos
e da institucionalização da política competitiva, que são internalizadas pelos
participantes.
Dahl argumentou que a democracia se
consolida mais facilmente quando a liberalização precede a inclusão; quando a
sequência é: regimes hegemônicos (autocracias) para oligarquias
competitivas/regimes semi-competitivos e então as democracias. A sequência
permite que as elites políticas se socializem nas regras do jogo da disputa
eleitoral e da barganha parlamentar antes da participação ampla. Quando ela se
completa com o sufrágio universal, o impacto não é disruptivo (e.g Reino Unido
etc).
A República Velha foi nosso regime
semi-competitivo. Enquanto a Venezuela era tiranizada por Gómez por quase
quatro décadas, a nossa elite política se socializava gradativamente nas regras parlamentares.
Em suas memórias (1964), Afonso Arinos antecipou a intuição de
Dahl: "Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se não é esta tradição
parlamentar, transmitida de homens a homens, de geração a geração, desde 1823,
e sempre subsistente apesar de poucas interrupções, que faz o Brasil tão
diferente dos vizinhos da América Latina".
Arinos se referia ao papel central de alguns notáveis na redemocratização após o Estado Novo: "Estes três principais pilotos da nau parlamentar vinham dos velhos tempos, anteriores a revolução e à ditadura: conheciam os homens, sabiam as praxes, dominavam bem a máquina. A eles deveu o Brasil a rapidez e a naturalidade com que as instituições legislativas — base da vida constitucional nas democracias — se restauraram aos 15 anos de interrupção". Fazem muita falta hoje, com certeza.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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