Folha de S. Paulo
Em 34 anos, dinâmica do funcionamento do
sistema constitucional gerou nada menos do que 125 emendas
Antes mesmo de assumir o governo, o presidente eleito
Lula precisará aprovar uma emenda
constitucional de natureza orçamentária para poder governar. Isso diz
muito sobre a dinâmica de funcionamento de nosso sistema constitucional, que
nos seus poucos 34 anos de vida gerou nada menos do que 125 emendas.
Como sabemos, a Constituição de 1988 é
resultado de uma espécie de compromisso maximizador. Além da "Constituição
material", que estabeleceu os direitos fundamentais, o sistema de
separação de Poderes, a Federação e as regras do jogo democrático, há uma "Constituição
orçamentária", que entrincheirou em seu texto uma parte substantiva do
conflito distributivo brasileiro.
Todos aqueles setores que dispunham de alguma forma de poder no momento da elaboração da Constituição depositaram ali suas aspirações, mas também seus interesses de natureza corporativa ou econômica. De um lado, foram protegidos recursos para atender despesas decorrentes de direitos fundamentais, como educação e saúde; mas também entrincheirados privilégios dispendiosos, em detrimento do interesse da população.
Quando analisamos as 125 emendas, com mais
vagar, observamos que poucas alteram a parte material da Constituição. E, o que
importa, nenhuma delas ameaçou verdadeiramente regras e princípios fundamentais
que habilitam nossa democracia constitucional.
A maior parte das emendas constitucionais
aprovadas nestas três décadas está relacionada à arrecadação, alocação e
distribuição das rendas públicas entre os entes federados e os setores da
sociedade capazes de se mobilizar em torno de políticas públicas de interesse
geral.
Mas não é só isso. O que chama mais a
atenção é a luta pela apropriação das rendas públicas por corporações públicas
e privadas e grupos políticos representados no Legislativo. De cada
reequilíbrio dessas forças políticas decorre a necessidade quase automática de
revisão da Constituição orçamentária. Isso explica o grande número de emendas.
O chamado orçamento impositivo e as emendas
do relator, no seu formato secreto, são apenas a expressão mais sofisticada
dessa dinâmica pela qual o corpo político "constitucionalizou" a
apropriação de parte das receitas públicas, com o objetivo de aumentar suas
chances de permanecer no poder. Daí a importância de o Supremo Tribunal Federal
afastar a "dimensão secreta" dessas emendas, pois não apenas
desorganiza as políticas públicas, mas sobretudo obstrui os canais de
representação democrática no Brasil. E é uma função fundamental do Supremo, manter
abertos esses canais abertos.
A Constituição de
1988 tem prestado um bom serviço à democracia brasileira. Sem o seu robusto
sistema de separação e distribuição de Poderes, dificilmente nossa democracia
teria resistido às investidas do populismo autoritário nestes últimos quatro
anos. A Constituição tem ainda contribuído para o avanço incremental do
bem-estar da população mais pobre. O SUS é prova
disso.
No entanto, a Constituição também tem
servido de trincheira para abrigar privilégios e interesses de grupos
minoritários altamente regressivos, dificultando que as promessas
constitucionais de "construir uma sociedade livre, justa e solidária"
se concretizem.
Ultrapassada a borrasca, o principal
desafio do novo
governo no campo constitucional é desalojar parte do conflito
distributivo incrustado em seu texto e organizar o processo orçamentário, de
forma que as escassas rendas públicas possam ser mais eficientemente alocadas
em políticas públicas que promovam o bem-estar, a redução de obscena
desigualdade e a prosperidade da população.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Um comentário:
Muito bom o artigo,quem sabe,sabe.
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