sábado, 3 de dezembro de 2022

Oscar Vilhena Vieira* - A Constituição orçamentária

Folha de S. Paulo

Em 34 anos, dinâmica do funcionamento do sistema constitucional gerou nada menos do que 125 emendas

Antes mesmo de assumir o governo, o presidente eleito Lula precisará aprovar uma emenda constitucional de natureza orçamentária para poder governar. Isso diz muito sobre a dinâmica de funcionamento de nosso sistema constitucional, que nos seus poucos 34 anos de vida gerou nada menos do que 125 emendas.

Como sabemos, a Constituição de 1988 é resultado de uma espécie de compromisso maximizador. Além da "Constituição material", que estabeleceu os direitos fundamentais, o sistema de separação de Poderes, a Federação e as regras do jogo democrático, há uma "Constituição orçamentária", que entrincheirou em seu texto uma parte substantiva do conflito distributivo brasileiro.

Todos aqueles setores que dispunham de alguma forma de poder no momento da elaboração da Constituição depositaram ali suas aspirações, mas também seus interesses de natureza corporativa ou econômica. De um lado, foram protegidos recursos para atender despesas decorrentes de direitos fundamentais, como educação e saúde; mas também entrincheirados privilégios dispendiosos, em detrimento do interesse da população.

Quando analisamos as 125 emendas, com mais vagar, observamos que poucas alteram a parte material da Constituição. E, o que importa, nenhuma delas ameaçou verdadeiramente regras e princípios fundamentais que habilitam nossa democracia constitucional.

A maior parte das emendas constitucionais aprovadas nestas três décadas está relacionada à arrecadação, alocação e distribuição das rendas públicas entre os entes federados e os setores da sociedade capazes de se mobilizar em torno de políticas públicas de interesse geral.

Mas não é só isso. O que chama mais a atenção é a luta pela apropriação das rendas públicas por corporações públicas e privadas e grupos políticos representados no Legislativo. De cada reequilíbrio dessas forças políticas decorre a necessidade quase automática de revisão da Constituição orçamentária. Isso explica o grande número de emendas.

O chamado orçamento impositivo e as emendas do relator, no seu formato secreto, são apenas a expressão mais sofisticada dessa dinâmica pela qual o corpo político "constitucionalizou" a apropriação de parte das receitas públicas, com o objetivo de aumentar suas chances de permanecer no poder. Daí a importância de o Supremo Tribunal Federal afastar a "dimensão secreta" dessas emendas, pois não apenas desorganiza as políticas públicas, mas sobretudo obstrui os canais de representação democrática no Brasil. E é uma função fundamental do Supremo, manter abertos esses canais abertos.

Constituição de 1988 tem prestado um bom serviço à democracia brasileira. Sem o seu robusto sistema de separação e distribuição de Poderes, dificilmente nossa democracia teria resistido às investidas do populismo autoritário nestes últimos quatro anos. A Constituição tem ainda contribuído para o avanço incremental do bem-estar da população mais pobre. O SUS é prova disso.

No entanto, a Constituição também tem servido de trincheira para abrigar privilégios e interesses de grupos minoritários altamente regressivos, dificultando que as promessas constitucionais de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" se concretizem.

Ultrapassada a borrasca, o principal desafio do novo governo no campo constitucional é desalojar parte do conflito distributivo incrustado em seu texto e organizar o processo orçamentário, de forma que as escassas rendas públicas possam ser mais eficientemente alocadas em políticas públicas que promovam o bem-estar, a redução de obscena desigualdade e a prosperidade da população.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo,quem sabe,sabe.