sábado, 3 de dezembro de 2022

Ascânio Seleme - De volta ao passado

O Globo

O que se vê hoje, com a resistência militar a Lula, meio velada, meio às claras, lembra os momentos que antecederam o fim da ditadura com a sucessão do último general por um civil

O mal-estar causado por declarações de oficiais das três Forças sobre política, os cuidados extraordinários que o novo governo vem tomando para lidar com a transição na área militar e a sondagem quase clandestina do presidente eleito a membros do alto comando do Exército lembram em tudo os momentos que antecederam o fim da ditadura com a sucessão do último general por um civil. Quem acompanhou a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em janeiro de 1985 e a posse de José Sarney em março do mesmo ano sabe como aqueles meses foram tensos e exigiram muita cautela e tato. O que se vê hoje, com a resistência militar a Lula, meio velada, meio às claras, tem a cara do passado.

Para refrescar a memória do leitor, não custa lembrar que o final da ditadura brasileira foi melancólico. O presidente João Figueiredo chegou ao fim de seu mandato de seis anos cansado e desmotivado. Tentou apoiar a candidatura de Mario Andreazza, seu ministro, que perdeu na convenção do PDS para Paulo Maluf. Mesmo envergonhado, apoiou Maluf e com ele perdeu a eleição para Tancredo. Figueiredo aceitou a vitória do ex-governador de Minas, um político conciliador, hábil e de excelente trânsito em todos os setores, mas nunca engoliu Sarney, que deixou o seu partido para apoiar e ser o vice do candidato da oposição.

Tancredo conversava com generais. Embora sem a mesma desenvoltura com que dialogava com deputados, senadores, governadores e todos os outros membros do colégio eleitoral que o elegeria presidente, o governador de Minas pavimentou seu caminho ao Planalto negociando discretamente com os militares. Já Sarney era considerado persona non grata e tratado como traidor do regime por deixar o PDS para apoiar a oposição e compor a sua chapa.

Pode-se até atribuir a morte de Tancredo ao clima de medo de um retrocesso provocado pela linha dura do governo militar que refutava o candidato a vice. Mesmo sabendo que as intensas dores abdominais que sentia eram sinais de uma doença potencialmente grave (oficialmente ele tinha uma diverticulite intestinal que evoluiu para uma infecção generalizada), o presidente eleito se recusou a buscar tratamento e uma provável cirurgia no abdome antes de assumir o cargo. Aconselhado a se cuidar por médicos e familiares, disse: “Façam de mim o que quiserem, mas só depois da posse”. Tancredo não tomou posse, foi internado na véspera e morreu 36 dias depois.

Sarney assumiu o lugar do titular hospitalizado no dia 15 de março de 1985, sem crise. Figueiredo não lhe passou a faixa e deixou o Palácio pela porta dos fundos. Foi o último ato da ditadura que durou 24 anos.

Confrontado com aquele momento histórico, os dias atuais revelam desconfortos políticos semelhantes. O desejo dos comandantes das três Forças de serem substituídos antes da posse de Lula é um exemplo da má vontade dos militares com o presidente eleito. A mesma má vontade que Figueiredo e seus generais tinham com Sarney. Não se pode fazer nada contra isso. A saída talvez seja mesmo trocar estes comandantes antes da posse. Mas vai depender de Bolsonaro. Ele é ainda o presidente e cabe somente a ele promover estas mudanças.

Outro problema será o afastamento de oito mil militares e parentes de militares do governo. A ideia inicial do presidente eleito era fazer uma limpeza ainda nos primeiros dias. Mas, como revelou Lauro Jardim, ontem, já se estuda fazer o descomissionamento destes funcionários fardados de maneira paulatina para não desagradar generais, almirantes e brigadeiros. Parece medo, mas também pode-se chamar de cautela.

A diferença fundamental entre 1985 e agora é que então não havia gente apoiando uma ditadura, pelo menos não publicamente. Ninguém se agrupou nas portas dos quartéis pedindo intervenção federal para impedir a posse do eleito. Ao contrário, os movimentos populares que antecederam a eleição de Tancredo e Sarney eram por mais democracia, não por menos. Milhões de brasileiros participaram de atos em diversas capitais clamando por eleição direta para presidente. Foram manifestações gigantescas, as maiores já realizadas no país até aqueles dias. Visto desta perspectiva, é fácil perceber como o Brasil mudou nestes 37 anos. Para pior.

Vai faltar oposição

A capacidade de aglutinação de Lula é mais do que conhecida. Em que pese a divisão do país, não se conhece pessoa mais habilitada para seduzir, negociar e produzir entendimentos. Não é por outra razão que o presidente eleito vai fazer passar a PEC da Transição e começará seu terceiro mandato com maioria nas duas Casas legislativas. Para isso, vai ter que engolir alguns sapos, mas quem olha para Lula até acha que ele gosta de sapo. O maior destes anfíbios é Arthur Lira, que já foi engolido. Com o apoio do PT e de Lula, o ex-bolsonarista seguirá na presidência da Câmara, mas agora liderando o Centrão na base do novo governo. E tem ainda a penca de partidos que estão sendo atraídos para o futuro governo. Pelo jeito, ficarão de fora apenas o PL de Valdemar da Costa Neto e os parlamentares radicais de carteirinha. Isso no início, porque mais adiante até o PL pode aderir.

Sacada do Múcio

Outro exemplo da eficiente articulação de Lula foi o retorno de José Múcio Monteiro ao cenário político. Aposentado do TCU e da política desde dezembro de 2020, Múcio foi elevado da planície para o Olimpo com a velocidade de um meteoro. Conhecido no passado por todos em Brasília como um dos mais habilidosos políticos brasileiros, o ex-deputado ocupou o vácuo que havia na área militar, sem título de coordenador de grupo de transição, mas com pinta de ministro. Com a aquiescência e a simpatia de todos, sobretudo dos militares. Ninguém mais pensava nele, só Lula.

Mal-educado

O brasileiro cordial não existe mais ou não é mais notado como tal. Aquele ser gentil e humilde, às vezes jeca, não passa mais do que um retrato desbotado, um filme preto e branco, um livro de história. O homem cordial, retratado por Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” como a principal contribuição brasileira para o desenvolvimento da humanidade, perdeu-se irremediavelmente na guerra ignorante, travestida de ideológica, que se espalha no Brasil pós-Bolsonaro.

Lobos e aloprados

Entre os “patriotas” que enfrentam chuva e sol diante dos quartéis pregando o golpe, há alguns lobos solitários, perigosos, aparentemente dispostos a cometer qualquer tipo de violência para impedir a posse de Lula. Há até quem prometa dar tiro na cabeça de petistas ou de qualquer um que fizer um “L” em sua frente. E há os aloprados, como o sargento da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos, lotado no GSI do general Heleno, que está na frente do quartel lutando para que “seu filho não vire um boiola e sua filha uma sapatão esquerdista”.

Nardes

O ministro do TCU Augusto Nardes ainda não foi localizado para receber a intimação de Alexandre de Moraes, que lhe dá dez dias para “prestar as informações que entender pertinentes” sobre a mensagem que mandou a ruralistas anunciando uma certa agitação na caserna em razão da eleição de Lula. Segundo Nardes, o clima nos quartéis poderia ter resultados imprevisíveis. A mensagem polêmica teria o poder de insuflar manifestações golpistas.

Ciro só

Não foi o PT que isolou Ciro Gomes. Foi ele próprio que se colocou na condição de solitário. Mágoa nunca construiu nada em política. Marina segue importando apesar da imensa pancadaria que recebeu do PT na eleição de 2014, muito maior do que a sofrida por Ciro em 2018. O próprio Lula, que poderia ser apenas um pote até aqui de mágoa, conversa e negocia até mesmo com os que incentivaram e aplaudiram sua prisão de quase dois anos. Ciro não negocia, não conversa, faz beicinho e segue sozinho.

Boiada de Minas

Romeu Zema terá de explicar malfeitos na área ambiental denunciados por funcionários da Secretaria do Meio Ambiente ao MGTV, da Globo. Segundo estes servidores, a fiscalização fez vista grossa à operação de mineradoras na Serra do Curral, em Belo Horizonte, deixando que duas empresas explorassem ilegalmente minério em área protegida. A agressão é tão grave que, se fosse no Rio, seria como se Cláudio Castro autorizasse mineração na Floresta da Tijuca. Se Zema não se mexer, o governo Lula terá poderes para impedir a passagem da boiada mineira, já que mineração é regulada por agência federal.

Convite

O Brasil lembra o Botafogo, cujos torcedores dizem que há coisas que só acontecem com o time da estrela solitária. Pois na política tem questões que só acontecem aqui. O governador Eduardo Leite foi convidado pela cúpula do PSDB para presidir o partido. Não se abriu uma disputa, não se apresentaram candidaturas, não se discutiu questões programáticas nem como será a relação com o governo eleito. Nada, debate zero. Isso não ocorre nem na Fifa, cujo apreço pela democracia é conhecido. Talvez o convite tenha sido a alternativa à falta de base dos tucanos ou o desinteresse generalizado dos quadros da legenda.

Let it be

A saudosa Cristiana Lôbo tinha uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo que terminava sempre com a nota “Perguntar não ofende”. Em sua homenagem, aqui vão algumas perguntinhas à juíza Mônica Ribeiro Teixeira, que numa ação por uso indevido de direito autoral pediu comprovação de que a música “Roda Viva” era mesmo de Chico Buarque. Sem querer ofender, a senhora pode dizer quem são os autores de “Detalhes”? Quem compôs “Sampa”? De quem é “Trem das Onze”? E a magistrada sabe quem foram os criadores de “Let it be”?

3 comentários:

Anônimo disse...

Figueiredo X Bolsonaro
Os 2 últimos presidentes da república que tiveram origem militar eram/são muito diferentes: Figueiredo foi general, chefe do SNI e atuou muitos anos no Executivo como parte do Exército, depois de longa e bem sucedida carreira militar. Bolsonaro era um mau militar, que rapidamente foi processado e expulso do Exército, depois de várias indisciplinas e até planos de explodir bombas no RJ! Sua carreira foi como deputado do baixo clero, onde exerceu 7 mandatos comandando rachadinhas nos seus gabinetes e ensinando os filhos a fazer o mesmo!
Figueiredo conduziu seu governo para a transição democrática, empossando uma chapa civil e respeitando a legislação de então. Bolsonaro é um político violento, miliciano mentiroso, que constantemente atacou a Democracia e o Judiciário, ameaçando constantemente a eleição e comandando um DESgoverno GENOCIDA e criminoso.
Figueiredo era um militar pouco democrático, mas que respeitava as regras e a Democracia ainda não totalmente implantada no seu governo. Bolsonaro é um miliciano antidemocrata, péssimo militar enquanto no Exército e PÉSSIMO político tanto como deputado das rachadinhas quanto como presidente GENOCIDA e criminoso, um CANALHA COMPLETO!

ADEMAR AMANCIO disse...

A gente nunca sabe se é Valdemar da Costa Neto,ou sem o ''da'',eu prefiro com o complemento.

Anônimo disse...

Boa, Amancio.
De fino trato, essa piada!