sexta-feira, 14 de abril de 2023

Márcio G. P. Garcia* - Farinha pouca, meu pirão primeiro

Valor Econômico

Criar privilégios para uma classe específica é um caminho trilhado há décadas, com resultados pífios para o crescimento

Em seu excelente livro “Ideias Novas de Economistas Mortos: Uma Introdução ao Pensamento Econômico Moderno”, Todd Buchholz descreve as relações entre empresários e governo: “A economia moderna recebeu seu impulso inicial quando Adam Smith denunciou o casamento incestuoso entre as monarquias e os mercadores da Europa. Uma das poucas coisas que Adam Smith, Karl Marx e Thorstein Veblen tinham em comum era a percepção de que os empresários adoram usar a política para ajudarem a si mesmos. Em uma declaração famosa, Smith alertou que os empresários raramente se reúnem sem conspirar contra o consumidor. Você pode ter certeza de que, ainda hoje, o orador da reunião da Câmara de Comércio local que exalta o livre mercado não abriria mão da chance de garantir um monopólio, um contrato governamental exclusivo ou uma regulamentação que garantisse seus lucros”.1

Como não poderia deixar de ser, o ensinamento dos clássicos continua bem vivo no Brasil de hoje. A informativa coluna de Pedro Cafardo (Valor, 11/4/23, “Empresários Sugerem ‘Plano Safra Industrial’”) bem o demonstra. Segundo o jornalista, um grupo de empresários e economistas, reunidos no grupo autointitulado “Brasil Primeiro”, entregou ao Ministro da Fazenda documento pedindo algumas medidas emergenciais para a “reindustrialização do país”.

O “Plano safra industrial” seria “um sistema nos mesmos moldes do existente para a agricultura”, com “créditos [com] condições competitivas internacionalmente em prazo e custo”. Já dando como favas contadas modificações nas políticas de crédito do BNDES, pedem que o Tesouro proveja “a equalização de juros enquanto a Taxa de Longo Prazo (TLP) não for modificada”.

Em bom português, esses empresários querem crédito subsidiado pelo governo. E não querem sequer esperar pelo BNDES, indo direta e imediatamente ao Tesouro Nacional. Qual a evidência que apresentam quanto à eficácia e eficiência de eventuais políticas de crédito subsidiado para a indústria? A coluna não cita nenhuma, o que sugere ausência de avaliação séria das inúmeras políticas públicas de crédito subsidiado implementadas no passado. Sequer se dão ao trabalho de quantificar o custo das políticas propostas.

Ao passar o pires no Ministério, os empresários afirmam que “tentaram poupar o Tesouro de gastos adicionais”, sugerindo reduzir a remuneração do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), um fundo dos trabalhadores brasileiros que financia, em parte, o BNDES. Ou seja, aparentemente, para evitar que todos os brasileiros paguem, via Tesouro Nacional, pelos subsídios pelos quais clamam, sugerem que só os trabalhadores o façam. Sem dúvida, uma política pública muito adequada para um governo do PT!

Um dos empresários entrevistados chegou mesmo a afirmar que “se o pequeno poupador da caderneta e o do FGTS são remunerados muito abaixo da TLP, não há razão para o FAT ser remunerado como um especulador”. Lógica perfeita: uma vez que já se espolia o trabalhador humilde em sua conta no FGTS, por que não o fazer ainda mais no FAT, a fim de subsidiar os empresários? Foi uma pena não se ter indagado ao empresário se ele mantém seu dinheiro na caderneta, ou se age como um “especulador”.

Sem dúvida, o Brasil é um país em que empreender é muito difícil. Os impostos são altos, a infraestrutura é deficiente, há pouca mão de obra qualificada e os juros são anormalmente altos, apenas para citar algumas dificuldades. Mas o caminho para solucionar todos esses problemas não é criar mais um privilégio para uma classe específica. Tal caminho tem sido trilhado há décadas, com resultados pífios quanto ao crescimento econômico e geração de uma das piores desigualdades de renda do planeta.

Muitas políticas públicas podem, sim, justificar subsídios. Mas precisam ser detidamente avaliadas, cotejando custos e benefícios, inclusive e sobretudo os sociais. As políticas de crédito subsidiado do BNDES durante o governo da presidente Dilma Rousseff, como bem mostrou Marcos Mendes (“O BNDES, de novo”, Folha de São Paulo, 7/4/2023) custaram muito caro (R$ 325 bilhões, a valores de hoje, segundo cálculos do Tesouro Nacional) e trouxeram pouquíssimos resultados em termos de investimento adicional.

O Ministério do Planejamento e Orçamento conta hoje com uma secretaria de monitoramento e avaliação de políticas públicas2 apta a lançar mão do estado da arte para levar adiante suas avaliações. É imprescindível que as políticas públicas passem pelo crivo de avaliação séria, cujos resultados devem ser trazidos para o debate público.

Evitar o desperdício e aumentar a qualidade do gasto público é tarefa fundamental. Só assim poderemos tentar diminuir o mau uso dos recursos públicos e o enorme acúmulo de regalias e privilégios, muitos deles injustificáveis, que atrasam o desenvolvimento do país e perpetuam a injusta grande desigualdade brasileira.

1 New Ideas from Dead Economists: An Introduction to Modern Economic Thought, Todd G. Buchholz, Penguim, 1989, página 16.

2www.gov.br/planejamento/pt-br/composicao/orgaos/secretaria-de-monitoramento-e-avaliacao-de-politicas-publicas-e-assuntos-economicos

*Márcio G. P. Garcia é professor titular, Cátedra Vinci Partners, departamento de Economia da PUC-Rio e pesquisador afiliado da MIT Sloan School of Management

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