Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Uma certa impaciência do presidente e de
alguns assessores revela como ainda não perceberam que não será possível
repetir o passado
A análise dos 100 dias do novo governo
coloca o presidente Lula entre dois espelhos. O primeiro reflete o contraste
com o desastroso mandato de Bolsonaro. Nesta comparação, mesmo contabilizando
os erros, a vantagem é acachapante. A métrica torna-se mais complexa quando se
mira o duplo período lulista, especialmente o último, pois será quase
impossível obter novamente uma popularidade acima dos 80%. Comparar-se a estes
dois parâmetros é importante, porém, o sucesso do lulismo em sua fase III terá
de ir além desses dois espelhos.
Não se pode entender a política sem
compreender o seu contexto. Como já mostraram autores clássicos como Maquiavel
e Weber, a melhor liderança política é aquela capaz de ler a sua época e
tentar, na medida do possível, ir além do seu tempo. Essa combinação de
contingência e transformação resume os desafios de qualquer governo. Mas,
lembrando outro grande pensador, os homens fazem a sua história, mas não nas
condições que gostariam.
O período Lula III tem como parâmetro
imediato o legado negativo deixado por Bolsonaro. Esse é o primeiro elemento
contextual que delimita suas ações, e com certeza o mais importante para a
definição do caminho inicial do mandato. Sem dúvida alguma, o final do governo
terá de ir além do contraste completo com o bolsonarismo, mas o ponto de
partida não poderia ser outro, particularmente após uma eleição tão apertada e
com uma país ainda bastante dividido. Sem entender isso, qualquer análise se
torna ingênua ou frágil historicamente.
Dado este contexto, é possível reconhecer cinco pontos que definiram os 100 primeiros dias como um período, basicamente, “Lula anti-Bolsonaro”. O primeiro deles é a questão democrática. Ela já havia sido essencial na eleição presidencial, porque uma parte significativa do eleitorado tinha votado contra o autoritarismo representado pelo bolsonarismo. Só que esse tema ganhou uma feição muito maior no ponto de partida do Lula III por conta da tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. Boa parte dos dois primeiros meses do mandato foram gastos com a investigação dessa intentona e buscando criar remédios para curar o país do autoritarismo.
Do ponto de vista da legitimidade, o frustrado golpe bolsonarista favoreceu muito a largada do terceiro governo Lula. Os Poderes e a Federação se uniram em torno da defesa da democracia e, por conseguinte, do novo presidente eleito. A palavra “união” que aparece no slogan governamental teve seu momento mais forte. Lula soube se aproveitar muito bem desse cenário e levou esse comportamento agregador para outras situações, como a ocorrida na tragédia de São Sebastião, aliando-se a um governador bolsonarista de origem para resolver o problema.
A questão democrática provavelmente vai
continuar na agenda pública, porque o bolsonarismo ou formas de conservadorismo
de extrema direita não sairão tão rapidamente de cena. É positivo estar do lado
da democracia, tanto do ponto de vista normativo como dos ganhos eleitorais.
Todavia, isso toma um espaço demasiado da agenda governamental, obrigando, por
exemplo, o ministro da Justiça a preocupar-se mais com tal temática do que com
a segurança pública.
O governo Lula, ressalte-se, não deve
abandonar a temática da democracia e é preciso compartilhar sua defesa com um
amplo conjunto de atores, só que essa questão não pode tomar um tempo que deveria
estar voltado para políticas de desenvolvimento e combate às desigualdades,
problemáticas que necessitam de grande esforço governamental.
O segundo ponto central nos 100 primeiros
dias foi a mudança da agenda. Eis aqui a maior transformação positiva do
governo Lula em relação ao espelho bolsonarista. O foco das atenções e das
ações político-administrativas mudou por completo em terrenos como a política
externa, a questão ambiental, as políticas sociais e direitos humanos. Um
pesquisador do futuro que assistir a um jornal da TV no período Bolsonaro e
depois ver o mesmo programa no início do novo mandato lulista terá certeza de
que algo efetivamente se modificou.
Os efeitos dessa transformação de agenda já
aparecem. Adotar um outro rumo permitiu ao Brasil voltar ao centro do tabuleiro
geopolítico global, algo que trará muitos benefícios ao país. Voltar a seguir a
linha da Constituição de 1988 em prol da garantia dos direitos dos mais
vulneráveis e combater as desigualdades são questões fundamentais para termos
uma sociedade melhor para nossos filhos e netos. Em poucas palavras, se
mantivéssemos a agenda anterior bolsonarista, o caminho seria direto para a
barbárie, sem chances para a civilização.
Mudar a agenda só se torna algo mais
profundo e duradouro se o discurso se transformar em prática. O mandato de Lula
III tem aqui um terceiro diferencial, que é a troca da lógica da guerra
cultural presente no período bolsonarista pela ênfase nas políticas públicas. O
debate deixou de ser sobre valores e identidades em abstrato para se tornar uma
discussão sobre metas, programas e capacidades administrativas. Parece um
avanço do absurdo ao óbvio, mas, infelizmente, esse foi um grande salto dos
primeiros 100 dias.
A normalidade da lógica das políticas
públicas pode permitir melhorias em vários indicadores sociais e de
desenvolvimento, tirando o país da situação calamitosa dos quatro anos
anteriores. Porém, ao escolher o caminho certo, o governo Lula abre um enorme
flanco para críticas mais objetivas sobre seu desempenho. No período Bolsonaro,
o debate público se concentrava em questões inúteis nascidas das redes sociais
e do cercadinho, ou então ficava preso ao grito constante contra as
barbaridades.
Desse modo, deixava-se de saber muito do
que a máquina bolsonarista estava fazendo em Brasília - por isso que vários
escândalos estão sendo descobertos agora.
O governo Lula será muito mais cobrado
pelas minúcias e pelos resultados concretos das políticas públicas. Claro que
isso é bom para o Brasil, permitindo à sociedade e à oposição realizarem um
controle necessário em qualquer democracia. Essa saudável fiscalização, não
obstante, deve lembrar do cenário de terra arrasada legado por Bolsonaro. Mudar
efetivamente as políticas ambientais ou educacionais vai exigir muito mais do
que 100 dias. Em muitos assuntos, somente no fim do primeiro ano haverá
capacidade estatal para transformar a nova agenda em políticas públicas.
Um quarto ponto de transformação deve ser
destacado: a forma de discutir a política se modificou. A imprensa tem um
espaço mais amplo de liberdade, o governo conversa com muito mais atores, o
desrespeito contínuo aos direitos de vários grupos deixou de ser a norma, em
suma, para lembrar de artigo recente de Conrado Hübner, a civilidade tornou-se
predominante no debate público, o que não é pouca coisa se lembrarmos do que
poderia ter acontecido se Bolsonaro tivesse vencido.
O governo Lula mudou o modo de fazer a
política, mas não está livre por completo da polarização como sedimento
sociológico do eleitorado brasileiro atual. Como cerca de 70% do eleitorado
opta muito fortemente pelo lulismo ou bolsonarismo, por vezes a opção
governista tem sido a de jogar mais para manter o seu eleitorado do que para ir
além, supondo que seja muito difícil mudar a maioria das preferências no curto
prazo. Trata-se de uma armadilha que, paradoxalmente, pode garantir um patamar
razoável de aprovação e barreiras de entrada a novos competidores, mas que
impede a conquista de mais eleitores e a adoção necessária de agendas
contemporâneas.
Um último ponto apareceu mais no período
final dos 100 primeiros dias. É a aposta na criação de mudanças institucionais
de médio e longo prazo. Cabe frisar que o bolsonarismo foi marcado por
zigue-zagues, agendas emergenciais e eleitoreiras. Curiosamente, quem lidera
esse processo no novo governo é a equipe econômica, exatamente a parte que mais
sofre com fogo amigo e incompreensão dos liberais. A dupla Haddad/Tebet está
propondo alterações estruturais como o arcabouço fiscal e a reforma tributária,
e transformações de larga profundidade e duração deveriam ser propostas por
outras partes do governo, e mesmo as mais qualificadas ainda estão no campo das
soluções já conhecidas.
O problema maior do início do governo não é
se contrapor ao bolsonarismo. O espelho que mais atrapalha é a comparação com
os outros períodos lulistas. Uma certa impaciência do presidente e de alguns
assessores revela como ainda não perceberam que não será possível repetir o
passado. Primeiro porque a herança de Bolsonaro agora é verdadeiramente
maldita. Segundo porque o mundo pode até ajudar o Brasil, mas a situação
internacional é muito mais confusa e complicada. Por fim, o cenário político é
mais difícil tanto no que se refere à governabilidade junto ao Congresso
Nacional, como principalmente por conta de a sociedade estar profundamente
dividida, de modo que o lulismo não terá o mesmo tamanho do período áureo.
Sem superar o legado negativo de Bolsonaro
não iremos muito adiante, e adotar políticas bem-sucedidas no passado pode ser
um primeiro passo positivo, mas será insuficiente. O espelho bolsonarista e o
dos outros governos lulistas não fornecerão todas as pistas para enfrentar os
desafios dos dias de hoje. Essa deveria ser a principal lição dos 100 dias.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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