Avanço sobre Orçamento requer atenção do TCU
O Globo
Corte será decisiva para fiscalizar profusão
de recursos distribuídos por meio das emendas parlamentares
O aumento no volume de recursos movimentados
por meio das emendas parlamentares exige que o Tribunal de Contas da União (TCU)
e as demais instituições de controle do Estado se tornem mais presentes. À
medida que o Congresso conquista mais espaço no Orçamento, cresce a relevância
do TCU, que atua como braço auxiliar do Executivo e do Legislativo e pode
julgar casos envolvendo congressistas. Crescem, também, as pressões sobre a
Corte.
Apesar de ela estar sujeita a nomeações políticas, o corpo técnico do TCU tem prevalecido na hora de aplicar multas quando constatados prejuízos ao Erário. Exemplo recente foi a descoberta de mais um desvio de verba parlamentar para bancar gastos familiares. Entre abril de 2022 e agosto de 2023, recursos destinados ao hoje ministro dos Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), então deputado federal, foram usados para encher o tanque de veículos de sua mulher, de seu pai, de seu irmão e de sua cunhada. Sempre no mesmo posto do Recife. No período, foram abastecidos 48 veículos. A conta de R$ 105.500 foi despachada ao Tesouro. O Ministério Público que atua junto ao TCU apresentou representação para investigar o modo como Costa Filho distribuiu dinheiro público entre a família. Denunciado o caso, o gabinete do ministro reviu a papelada, e o dono do posto concluiu que seu estabelecimento “cometeu um erro contábil”.
Em 2021, quando eclodiu o escândalo em torno
das emendas do relator, a Comissão Mista de Orçamento aprovou dois
requerimentos ao TCU. O objetivo era ter acesso aos autos do processo que
investigava suspeitas de uso ilícito dos recursos das emendas, conhecidas por
RP9. O deputado Hugo Leal (PSD-RJ) argumentava que precisava ter acesso a
informações para relatar o Orçamento do ano seguinte. No final de 2022, porém,
o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou as emendas do relator
inconstitucionais, esvaziando o pedido.
Isso não impede que prossigam investigações
sobre os demais tipos de emenda, tendo em vista a ampliação dos recursos à
disposição dos parlamentares para R$ 54 bilhões no Orçamento deste ano. O TCU
pode usar seu poder institucional para distribuir multas a pessoas físicas e
jurídicas, públicas ou privadas, que causem prejuízo ao Erário. Também passam
por seu escrutínio as concorrências públicas. Empresas privadas envolvidas em
falcatruas com dinheiro do contribuinte podem ser impedidas de fazer negócios com
o setor público.
Não se trata de fazer generalizações sobre
casos de desvios, mas, num país conhecido por ter governos e autoridades que
gastam demais e gastam mal, são essenciais os órgãos de controle de gastos
públicos como o TCU — assim como Controladoria Geral da União (CGU) e os
tribunais de contas estaduais e municipais, além dos braços do Ministério
Público que atuam neles. Sobretudo diante da voracidade e da velocidade
crescente com que o Congresso avança sobre o Orçamento.
Repressão a tráfico de mercúrio na Amazônia
exige ação determinada
O Globo
Contrabando do elemento químico usado pelo
garimpo ilegal ameaça o meio ambiente e a saúde pública
Anos de descaso com a Amazônia produziram
danos ambientais para além do desmatamento. Com ele, veio o aumento do garimpo
ilegal e o uso crescente de mercúrio, envenenando rios e a população local. A
contaminação precisa ser monitorada de perto para ser contida.
O mercúrio é usado para separar o ouro de
areia, pedras e outros sedimentos. Para obter 1kg de ouro, são necessários
2,6kg de mercúrio. É provável que toneladas do produto já tenham sido
descartadas nos rios da Amazônia. Trata-se de problema duplo: ambiental e de
saúde pública. O envenenamento da água e do solo afeta ecossistemas e peixes,
atinge a população e causa diversos tipos de doenças — no sistema nervoso
central, pode provocar alterações cognitivas e motoras; tremores; hipertensão e
outras disfunções cardíacas; perda de memória e de visão, além de esterilidade
e problemas renais. Prejudica a saúde dos próprios garimpeiros.
Usado de forma legal em laboratórios, na
produção de pilhas, baterias, lâmpadas, cloro, soda cáustica e na odontologia,
o mercúrio só pode ser vendido a mineradoras com autorização dos governos
estaduais. Mas, devido à falta de fiscalização e repressão, também pode ser
encontrado em lojas de produtos agrícolas em Roraima e no Pará. É anunciado até
na internet.
A apreensão, no ano passado, de 700kg de
mercúrio mostra que o contrabando atingiu níveis sofisticados. Na Operação
Hermes, Polícia Federal e Ibama desmantelaram uma organização que
contrabandeava mercúrio para garimpos. Havia remessas chegando pelo aeroporto
de Viracopos, em Campinas (SP). A rota mais usada são estradas na fronteira da
Bolívia com Mato Grosso. A PF, em 2021, monitorou uma remessa da Colômbia —
provavelmente oriunda da China ou do México, os dois maiores fornecedores — até
a mineradora Aricá, que tinha como acionista uma empresa do filho do governador
de Mato Grosso. As notas fiscais do contrabando identificavam inofensivas bolas
de aço. Na Hermes II, a PF localizou outra empresa que vendeu 5 toneladas de
mercúrio ilegal em dois anos. O custo dos danos ambientais que seriam causados
foi estimado em R$ 5 bilhões, e a Justiça bloqueou R$ 2,9 bilhões em contas de
investigados.
O país precisa coibir a venda clandestina do
mercúrio não só porque é vital para a conservação do meio ambiente e
para a saúde de quem consome peixes da Amazônia e vive na região. O Brasil
assinou em 2013 a Convenção de Minamata e, ao lado de 127 outros países, se
comprometeu com a redução ou eliminação do uso do mercúrio. Mesmo assim,
continua sem promover o controle e a repressão necessários. De acordo com
Sergio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, de estudos sobre desenvolvimento
sustentável, o risco é surgir na Amazônia uma segunda Minamata, cidade japonesa
cuja população, nas décadas de 1950 e 60, foi envenenada por mercúrio
industrial despejado na sua baía.
Ofensivas do Irã mostram seu poder após
conflito em Gaza
Valor Econômico
Guerra permitiu ao Irã atingir alguns
objetivos estratégicos de sua agenda externa
Há muitos perdedores no atual conflito no
Oriente Médio: Israel, o povo palestino, os Estados Unidos, a Europa, vários
países árabes e, recentemente, aqueles que mais dependem do comércio pelo Canal
de Suez. Todos foram prejudicados pela crise que começou com o bárbaro ataque
do grupo palestino Hamas a Israel, em 7 de outubro.
Mas há um país que claramente se beneficiou
com a crise, e mostrou um surpreendente poderio: o Irã. A Rússia saiu ganhando
indiretamente, pois o conflito tirou a atenção mundial da guerra da Ucrânia e
vem ajudando a sustentar a cotação do petróleo.
A guerra permitiu ao Irã atingir alguns
objetivos estratégicos de sua agenda externa. Em primeiro lugar, o conflito
adiou a aproximação que vinha ocorrendo entre Israel e alguns países árabes,
principalmente a Arábia Saudita. Uma aliança entre israelenses e sauditas, que
vinha sendo patrocinada pelo governo americano, seria péssima para o regime
iraniano, pois reuniria seus dois principais inimigos no Oriente Médio. Agora,
porém, o sofrimento dos palestinos diante dos ataques israelenses acirra a
rejeição a Israel nos países islâmicos e inviabiliza qualquer tentativa a curto
prazo de aproximação política, econômica e militar com Tel Aviv.
A guerra deve ainda manter Israel ocupado por
muito tempo, reduzindo a capacidade do país de conter a ascensão militar e
política do Irã na região. Além de Gaza, as forças israelenses estão de
prontidão para um possível conflito com o Hezbollah, na fronteira com o Líbano,
e para o risco de uma revolta palestina na Cisjordânia. A economia israelense
sofrerá muito com a enorme mobilização militar.
A operação militar em Gaza, que já matou
milhares de civis palestinos, gerou críticas a Israel. Colocou ainda o governo
do presidente Joe Biden numa sinuca. Ao apoiar incondicionalmente Israel, os
EUA estão alienando aliados árabes e islâmicos. A guerra obriga os países a se
posicionarem, e o mundo islâmico apoia em peso a causa palestina (ainda que
muitos não apoiem a ação do Hamas).
A guerra permite ao Irã se mostrar como a
única potência muçulmana capaz de, e disposta a, enfrentar os EUA e Israel,
ainda que indiretamente, por meio de uma rede de grupos apoiados por Teerã, que
inclui o Hamas, o Hezbollah e os houthis, no Iêmen, que agora estão atacando
navios comerciais que transitam pelo Mar Vermelho.
O conflito criou grande constrangimento para
a Autoridade Palestina (AP), rival do Hamas e que controla a Cisjordânia. Mais
disposta ao diálogo com Israel, a AP vem sendo agora acusada de pactuar com o
inimigo e corre o risco de perder apoio interno.
Ainda que o conflito não tenha elevado os
preços do petróleo, interrompeu uma tendência de queda, que vinha sendo puxada
pela desaceleração da economia chinesa e pela expectativa de demanda menor
neste ano. O petróleo é o principal produto de exportação do Irã.
Os ataques do houthis, grupo apoiado pela Irã
e que controla parte do Iêmen, a navios comerciais no Mar Vermelho está
interrompendo parcialmente a principal rota de comércio entre a Ásia e o
Ocidente. É improvável que Teerã não tenha autorizado esses ataques. Entre os
tantos efeitos, a redução do fluxo de navios no Canal de Suez abala a economia
egípcia e deve elevar os preços da energia na Europa.
O Irã parece estar tão à vontade que sentiu
que podia fazer ataques no Iraque (supostamente contra um centro de
inteligência israelense), na Síria e no Paquistão (aparentemente contra grupos
ligados ao Estado Islâmico, que recentemente assumiu a autoria de um grande
atentado no Irã). Os três países são aliados de Teerã. Nenhum outro país tem
essa capacidade, nem a de mobilizar tantos grupos aliados na região.
De imediato não parece haver nenhum candidato
a enfrentar o regime dos aiatolás. O presidente Biden não deverá se arriscar em
nenhuma aventura militar num ano eleitoral, nada muito além dos atuais ataques
de mísseis aos houthis. Os EUA já estão também empenhados indiretamente em dois
conflitos, ao apoiarem militar e financeiramente Israel e a Ucrânia. Israel
está ocupado demais neste momento. Os europeus não têm apetite para esse tipo
de enfrentamento sem a liderança dos EUA. Os principais países árabes não têm a
capacidade necessária. A Rússia é um aliado de Teerã, que está ajudando no
esforço de guerra russo na Ucrânia.
Sobra a China. No Fórum de Davos, o premiê
chinês, Li Qiang, enfatizou a importância de manter “estáveis e funcionantes”
as cadeias de suprimentos globais, mas sem fazer referência aos problemas no
Mar Vermelho nem ao Irã. Pequim mantém uma boa relação com Teerã e vem tendo um
papel fundamental para ajudar o Irã a driblar as sanções ocidentais. O Irã
fornece cerca de 10% do petróleo consumido pela China.
Mas os chineses estão sendo prejudicados pelo risco de navegação no Mar Vermelho, que está elevando os custos de transporte marítimo e de seguro, o que ameaça a sobrevivência de empresas exportadoras chinesas que têm margem de lucro pequena. Pequim é avessa à diplomacia ostensiva, mas é plausível que esteja negociando com Teerã para reduzir o risco de um conflito mais amplo no Oriente Médio.
Reforma inevitável
Folha de S. Paulo
Apesar de resistência petista, revisão de
carreiras dos servidores se impõe
Diante da disposição de
lideranças no Congresso em fazer avançar uma reforma administrativa,
o governo dá sinais de que poderá deixar a posição avessa a esse debate.
Reagindo ao que parece ser um inevitável
avanço da pauta, a ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dweck, indica
que o Executivo
apresentará um projeto alternativo à principal iniciativa já em
tramitação, a proposta de emenda constitucional 32, de 2020.
Concebida pela equipe econômica de Jair
Bolsonaro (PL) e aprovada em comissão especial da Câmara em 2021, a PEC diminui
o alcance da estabilidade do funcionalismo, abre mecanismos mais flexíveis de
contratação, disciplina a concessão de benefícios e cria algum espaço para
redução de salários e ajustes na folha de pagamento.
Não estão previstos, por outro lado,
dispositivos como avaliação de desempenho e critérios de demissão, que não
dependem de mudança constitucional e ficariam para regulamentação posterior —já
prevista pela Constituição, mas nunca levada a cabo.
Ainda não se conhecem os detalhes do que
proporá o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas já foi revelada a
preferência por legislação ordinária e normativos que circunscrevam a reforma a
temas como estrutura e progressão de carreiras e barreiras a supersalários.
Medidas como a limitação do alcance da
estabilidade funcional e a redução de salários iniciais para melhor alinhamento
com o setor privado, necessária ao menos no nível federal, devem continuar a
sofrer ferrenha oposição da esquerda e do PT, que mantêm alinhamento a
interesses corporativistas dos servidores.
Dada a resistência do governo, é improvável
que se obtenha entendimento em prol de uma reforma ampla, como foi possível no
caso da mudança tributária. Mas não se deve desperdiçar oportunidade para
avanços urgentes que melhorem a qualidade do serviço público e tragam impacto
para o cidadão.
Existe um consenso de que limitar o número de
carreiras e ampliar a flexibilidade da gestão de pessoas é essencial. Há falta
de quadros em certas áreas e sobras em outros, o que pode ser mitigado sem
necessidade de novas contratações.
Da mesma forma, não é mais possível adiar a
regulamentação da avaliação por desempenho, que pode e deve servir como
ferramenta de remuneração diferenciada no caso do bom servidor e, sendo o caso,
de demissão do mau.
Também cumpre limitar os
ganhos excessivos do topo do funcionalismo, caso do Judiciário e do
Ministério Público, habituados a definir seus próprios privilégios. A equidade
é outro componente necessário de uma reforma que não pode mais tardar.
Aborto interrompido
Folha de S. Paulo
Autoridades devem garantir o direito, em vez
de dificultá-lo para ganho político
A interrupção de gravidez é assunto de saúde
pública e autorizada no Brasil em situações específicas, casos de estupro,
risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Contudo o poder público têm feito
uso político do aborto, ao dificultar o acesso ao procedimento mesmo nos casos
previstos na lei.
A mais recente investida foi sancionada
neste mês pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil). A
nova lei determina que o poder público providencie "o exame de ultrassom
contendo os batimentos cardíacos do nascituro para a mãe, assim que
possível". A conscientização sobre o aborto, alegada pela norma, funciona
na prática como intimidação às gestantes.
Na mesma linha obscurantista, uma lei
municipal de Maceió, de dezembro de 2023, obriga a vítima de estupro que tenha
engravidado a olhar imagens do feto antes do procedimento. A Defensoria Pública
de Alagoas contesta a constitucionalidade do diploma.
Tais medidas impõem danos psicológicos às
mulheres autorizadas a interromper a gravidez.
O legislador estadual ou municipal não
deveria criar embaraços para que um direito assegurado por lei federal seja
exercido. As autoridades fariam melhor em empenhar esforços para garantir que a
decisão da mulher seja atendida de forma segura e humanizada.
Outras medidas administrativas tentam
igualmente dificultar o acesso ao aborto legal.
Em dezembro de 2023, a Prefeitura de São
Paulo incluiu no site oficial da Secretaria Municipal de Saúde a informação de
que a interrupção é permitida até a 22ª semana de gravidez —a lei, entretanto,
não estipula limite nenhum.
No mesmo mês, a gestão local suspendeu a
realização de abortos legais no único hospital da cidade que executa o
procedimento em gestações avançadas. Em resposta a uma ação popular, o Tribunal
de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou o
retorno do serviço na instituição neste janeiro.
Reduzir a disponibilidade de equipamentos
públicos para realização do aborto é uma das formas de restringir esse direito,
em especial para as mulheres mais pobres.
Em vez de se pautar por pressões ideológicas,
o poder público deve cumprir o seu papel de garantir o acesso à saúde de
qualidade, o que inclui a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.
Caso contrário, trata-se tão somente de violar direitos das mulheres para obter
capital político.
Emenda para um verso de pé quebrado
O Estado de S. Paulo
Retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima
não é resgate de um projeto visionário, como o governo anuncia, e sim uma
tentativa de reduzir o prejuízo com o desatino lulopetista
Como uma reprise de um filme ruim, a
cerimônia de retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco,
paralisadas desde 2015, foi marcada por discursos tão grandiloquentes quanto
delirantes. Ao ouvir o presidente Lula da Silva cantar as glórias da iniciativa
de gastar ainda mais dinheiro numa obra que simboliza a corrupção e a inépcia
da era lulopetista, é impossível deixar de lembrar do ufanismo que acompanhou,
entre 2005 e 2006, os anúncios de investimentos astronômicos da Petrobras, como
a própria refinaria pernambucana e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro
(Comperj), dois sumidouros de recursos públicos que viraram símbolos de
corrupção.
Havia dois caminhos para a Refinaria Abreu e
Lima, que produz menos da metade do que previa o projeto original. O melhor
deles, de longe, seria a venda, que chegou a ser tentada, em meados de 2019.
Não apareceram compradores, e a pandemia de covid que veio a seguir enterrou de
vez as esperanças de atrair investidores. A outra via era concluí-la, para pelo
menos reduzir o prejuízo da empresa depois dos quase R$ 60 bilhões despejados
na obra.
O que está ocorrendo agora, portanto, é uma
tentativa de emendar um verso de pé quebrado, não o resgate de um projeto
visionário, como o governo tenta apregoar. Por essa razão, o governo faria
melhor se realizasse a retomada das obras sem fanfarra, com a discrição e a
modéstia exigidas daqueles que cometeram um erro grave e são capazes de
reconhecê-lo. Mas Lula e o PT, claro, nunca erram. De maneira constrangedora,
em vez da discrição escolheram o estardalhaço, num comício em que Lula não só
anunciou, como se fosse algo positivo, que o Brasil gastaria ainda mais
dinheiro num projeto perdulário que nem deveria existir, como o fez atacando o
governo anterior, a Lava Jato e as elites. No mesmo tom, Abreu e Lima foi
apresentada como “a refinaria do futuro, da virada” pelo presidente da
Petrobras, Jean Paul Prates.
Nem todo o malabarismo retórico do
lulopetismo, no entanto, é capaz de esconder o fato de que dezenas de bilhões
de dólares foram consumidos em obras que, quando muito, ficaram pela metade,
tornando-se um butim para políticos e executivos corruptos. Os testemunhos dos
próprios envolvidos no esquema não deixaram dúvidas sobre a farra inescrupulosa
que levou a Petrobras ao centro de um dos mais rumorosos casos de corrupção do
mundo.
Mas Lula da Silva não se dá por vencido.
Insiste na tese de que o escândalo conhecido como “petrolão” fez parte, na
verdade, de “uma mancomunação entre alguns juízes e procuradores (da Lava Jato)
subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que nunca aceitaram
o Brasil ter uma empresa como a Petrobras”. Sem pudor, voltou a usar a tese de
que seu governo e a Petrobras foram vítimas de um grande complô, capitaneado, é
claro, pelos “imperialistas estadunidenses”.
Prates anunciou, pela primeira vez, a
estimativa de gastos para terminar a obra: R$ 8 bilhões – quase o mesmo valor
inicialmente previsto para a obra na época em que foi apresentada pelo então
diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o principal delator do esquema de
corrupção que ajudou a montar na empresa. Costa também alardeava que o projeto
representava o estado da arte no setor de petróleo, com o uso de novas
tecnologias para refinar tanto o petróleo do pré-sal quanto o venezuelano. A
parceria entre Lula e o então ditador da Venezuela, Hugo Chávez, deveria
significar o grande salto adiante dos dois países. Chávez, que era esperto,
ignorou o acordo e não colocou um tostão na empreitada.
Dezoito anos depois, só restaram um imenso prejuízo e a habitual alucinação patrioteira do lulopetismo. A refinaria, que levou nove anos para entrar em operação parcial, foi descrita pelo atual presidente da Petrobras como “uma máquina maravilhosa”, a mais moderna de todo o continente americano. Será, quando muito, a prova cabal dos estragos que uma ideologia antediluviana é capaz de causar ao País.
Desigualdade além da renda
O Estado de S. Paulo
2023 foi o ano da desigualdade no mundo,
alerta o Banco Mundial, mostrando que o problema passa pelo enfrentamento de
múltiplas crises, e não apenas o combate à pobreza
Se 2022 foi de incerteza, 2023 se mostrou o
ano da desigualdade. Assim começa o relatório no qual o Banco Mundial revisita
o que foi o ano passado para o planeta em nove gráficos relacionados à pobreza,
à dívida externa, ao crescimento econômico e às mudanças climáticas. É um
documento sintético, objetivo e apropriado ao contexto de fóruns internacionais
como o Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos entre 15 e 19 de janeiro, ao
olhar para múltiplas crises em curso, radiografar resultados sem ideologias e
chamar a atenção para caminhos possíveis no enfrentamento de alguns dos nossos
maiores problemas. E, pelo que afirma o Banco Mundial, a desigualdade é
decididamente o maior deles no momento.
O diagnóstico é claro: o combate à pobreza
estagnou. Na fatia dos mais pobres entre os pobres do mundo, 2023 chegou ao fim
com algo em torno de 700 milhões de pessoas sobrevivendo com menos de US$ 2,15
(R$ 10,50) por dia. Esse número era 40% menor em 2010. Os dados mostram que os
efeitos da pandemia de covid-19 ainda são sentidos, especialmente entre os
países de baixíssima renda. Progressos anteriores foram neutralizados pelo
“enorme revés da pandemia de covid19, que trouxe consigo não somente perda de
vidas e devastação, mas também maior investida de choques e crises” – em outras
palavras, a batalha tornou-se mais dura por causa das ameaças trazidas pelas
mudanças climáticas, por conflitos, violência e insegurança alimentar, chagas
que dificultam a recuperação das economias.
O documento fala numa sucessão de tragédias
ao longo do ano que tisnaram a economia e a vida nesses países – e não apenas
conflitos como a invasão russa na Ucrânia ou eventos extremos no clima, mas
inflação mais elevada, taxas de juros mais altas, redução do investimento,
crescimento insuficiente e elevação da dívida externa das nações mais pobres.
Trata-se de um cenário sombrio, sobretudo quando se constata que, embora as
disparidades tenham aumentado na maioria dos lugares, os últimos anos haviam
assistido à redução das desigualdades entre os países – fruto do crescimento
acelerado na faixa média da distribuição global da renda e entre os chamados
super-ricos, aqueles que estão no topo da pirâmide global. O crescimento de
pessoas de renda relativamente baixa dos países mais pobres e pessoas muito
ricas dos países mais ricos se somou a uma espécie de estagnação das classes
médias tradicionais na Europa, na América do Norte e na América Latina.
E o freio chegou. Com a pandemia e suas
sequelas, a multiplicidade de crises planetárias e uma soma extensa e intensa
de problemas de governança global, o fato é que a desigualdade entre os países
cresceu mais rapidamente no mundo pós-covid-19 do que em qualquer outro momento
desde a 2.ª
Guerra Mundial. Num planeta em que os
destinos dos países estão interligados, a desigualdade entre eles é um problema
central na concertação entre as nações e seu futuro. Os efeitos destrutivos são
evidentes: a corrosão da confiança, o enfraquecimento do multilateralismo, o
abalo em políticas de cooperação e o aumento dos conflitos internacionais estão
entre eles. Desigualdades profundas também costumam funcionar como um terreno
fértil para saídas populistas e autoritárias.
Muito mais útil do que os habituais
relatórios que põem o dedo em riste contra superbilionários é observar saídas
para a geração de renda e oportunidade. O próprio documento do Banco Mundial
reforça tal ponto, ao destacar que 2,4 bilhões de mulheres em todo o planeta
têm menos direitos que os homens para o exercício de funções para as quais elas
são igualmente qualificadas. É um exemplo, mas não faltam outros. Problemas de
acesso desigual à saúde, à educação e a serviços de qualidade nas cidades
também já foram apontados em outros documentos, do Banco Mundial e de outras
instituições, como fatores fundamentais para pensar a desigualdade.
Diferentemente do que tentam difundir os mais barulhentos porta-vozes contra a
riqueza e a economia de mercado, a desigualdade é um problema que vai muito
além da renda.
Mistificação não combina com medicina
O Estado de S. Paulo
CFM faz pesquisa marota para desestimular
vacinação de menores de 5 anos contra a covid
A essa altura do campeonato, o Conselho
Federal de Medicina (CFM) achou que era oportuno realizar uma enquete para
“conhecer a percepção” dos cerca de 550 mil médicos brasileiros sobre a
obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos
e 11 meses de idade. É estupefaciente. Ao lançar dúvidas sobre a segurança da
vacina com essa sondagem marota, o CFM presta um enorme desserviço à saúde
pública e expõe as crianças a perigo no momento em que está em curso um esforço
nacional de impulsionamento das campanhas de vacinação infantil, não apenas
contra a covid-19, como também contra outras doenças que haviam sido
erradicadas.
O CFM até poderia ter o benefício da dúvida
sobre seus reais objetivos com essa pesquisa esdrúxula caso não tivesse se
comportado tão mal durante alguns dos momentos mais dramáticos da pandemia no
País. Basta lembrar que a Defensoria Pública da União chegou a ajuizar uma ação
contra o CFM em 2021, no auge da crise sanitária, depois que o órgão chancelou
o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com
covid-19, sem que houvesse comprovação da eficácia desses medicamentos contra a
ação do Sars-Cov-2. Ali já estava evidente que a orientação política da direção
do CFM sobrepujava o compromisso com os postulados científicos que se espera de
uma entidade médica que se pretende séria.
Embora tenha menos de 3% da população
mundial, o Brasil concentrou quase 13% do total de mortes por covid-19 no
mundo, com mais de 700 mil óbitos registrados. Não poucos estudos revelaram que
uma parte dessas mortes poderia ter sido evitada caso o anticientificismo não
tivesse encontrado tanto espaço para vicejar no País. Evidentemente, o então
presidente Jair Bolsonaro, cuja gestão periclitante da crise sanitária foi uma
tragédia dentro da tragédia, foi o grande artífice desse anticientificismo em
nível inédito na história recente do País. Mas, para espanto de grande parte da
sociedade, algumas de suas estultices encontraram eco no CFM, entre as quais a
defesa do “tratamento precoce” e a campanha para desestimular a vacinação.
Assim como a esfericidade da Terra, a
segurança e a eficácia das vacinas contra a covid-19 é um assunto pacificado.
Os imunizantes passaram por rigorosíssimos testes antes de serem inoculados na
população, sobretudo nas crianças. Mas, se estudos científicos não bastam para
reforçar a confiança nas vacinas, aí está a realidade factual a demonstrar, no
próprio seio familiar, que os casos de infecção e morte por covid19 despencaram
a partir do início da vacinação no País, que completou três anos no dia 17 passado.
Com toda razão, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) criticou o CFM por realizar uma enquete como essa em pleno 2024. Em nota publicada em seu portal, a SBIm lembra o terrível número de crianças menores de 5 anos que morreram no País em decorrência da covid-19 (135 óbitos apenas em 2023) e afirma, acertadamente, que “equiparar ciência a crenças pessoais” dos médicos é um terrível equívoco. No limite, isso leva à morte.
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