segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Fernando Gabeira - Democracia e seus tremores

O Globo

Acontecimentos que passam de raspão na imprensa, às vezes fermentam nas redes. Ou são plantados como mais uma semente

Celebramos no 8 de Janeiro um ato que se chamou Democracia Inabalada. Isso nos transmite a impressão da força da democracia, depois das eleições e do fracasso de uma tentativa de golpe.

Quando olhamos de fora, pensamos: E la nave va. Mas esse imenso barco da democracia inabalada tem alguns furos que, lá na frente, podem resultar em algo como as revoltas de 2013. Em outras palavras, existem coisas que potencialmente podem colocar o povo contra a democracia.

Desde o século passado, quando se teorizou sobre a sociedade do espetáculo, é relativamente clara a ideia de que governos e sistemas não dependem apenas do que fazem. São determinados pela visão que se transmite deles pela mídia.

Começam aí minhas apreensões. Atualmente, essa visão não é apenas transmitida pela mídia, mas também, e fortemente, pelas redes sociais. Acontecimentos que passam de raspão na imprensa, às vezes fermentam nas redes sociais. Ou pelo menos são plantados como mais uma semente que adiante pode germinar.

Recentemente, o ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10,3 bilhões da J&F. É a mesma empresa que empregou o recém-saído ministro Lewandowski como consultor, a mesma que se complicou muito no período da Lava-Jato. Somado à proximidade que governo e STF têm mostrado nos últimos tempos, esse fato dá margem a inúmeras elaborações, sempre negativas para a Corte.

Coube ao Supremo analisar e punir as transgressões do 8 de Janeiro. Esse é outro capítulo ainda em aberto. A posição é punir com rigor. No entanto, sem estrutura para cuidar de tantos casos, o Supremo deixou algumas brechas. Houve suicídio, denúncias de desrespeito aos direitos humanos e pouquíssima fiscalização social: até visitas de parlamentares foram proibidas.

Sem contar que a corda arrebentou do lado mais fraco: invasores foram condenados a longas penas, como se a tentativa de golpe se limitasse exclusivamente à invasão. Tudo isso nas redes cai num caldeirão sempre remexido, com resultados visíveis no tempo.

A live de protesto pelas condições dos presos do 8 de Janeiro recebeu 8 milhões de visualizações, audiência muito maior que a do próprio ato Democracia Inabalada.

O caldeirão se alimenta também de pequenos deslizes de ministros, uma gasolina aqui, uma viagem ali, enfim, fatos diversos que passam pela mídia. Mas há também feridas mais profundas, como a destinação de quase R$ 5 bilhões para financiar as eleições municipais. É sentido como um absurdo diante de tantas necessidades inadiáveis no Brasil.

Indo um pouco adiante. A imagem da democracia que depende da mídia e das redes sociais começa a apresentar também fragmentação: a imprensa aparece na rede como cúmplice da decadência. Recentemente vivi isso. Sou acusado de criticar Bolsonaro no caso ianomâmi e elogiar Lula.

Vejo uma diferença clara de comportamento. Bolsonaro queria e quer a dissolução dos indígenas na sociedade abrangente. Lula reconhece sua identidade, criou um ministério para isso, viajou para Rondônia, investiu numa ação de emergência que, parcialmente, fracassou por falta de continuidade.

Nas redes, a dificuldade de resolver a questão ianomâmi e a retirada dos garimpeiros aparecem como se o esforço do ano passado fosse apenas um jogo de cena destinado a enganar.

Recentemente, o filho de um ministro do STJ se exibiu com roupas caríssimas nas próprias redes sociais. Sem comentários. Registro apenas que um juiz do Rio proibiu que a exibição fosse criticada. Isso fortalece a desconfiança em qualquer projeto de controle democrático sobre as redes. Dá a impressão de que, no fundo, é algo apenas para facilitar a censura.

Não acumulo fatos com a pretensão de apresentar uma saída para a democracia. Apenas seguirei formulando ideias que são fatores de sustentabilidade.

Tenho a impressão de que isso foi esquecido e de que as elites dominantes acham que tudo continuará assim, não importa o que façam. Pelo menos, fica consignada essa preocupacão, na penúltima segunda-feira de janeiro de 2024.

Adiante veremos.


2 comentários:

Anônimo disse...

■■"Recentemente, o ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10,3 bilhões da J&F. É a mesma empresa que empregou o recém-saído ministro Lewandowski como consultor, a mesma que se complicou muito no período da Lava-Jato. Somado à proximidade que governo e STF têm mostrado nos últimos tempos, esse fato dá margem a inúmeras elaborações, sempre negativas para a Corte".

Do texto, destaquei o fragmento acima para representar o apanhado todo.

■■■E nós?
■■E cada um de nós::
=》Está escolhendo um lado das ideias e práticas que estão fermentando o ambiente que pode levar a dissolver a nossa democracia e eventualmente até negando o malfeito e concordando que alguns façam uso pessoal de estruturas do Estado para ganhar proteção para as próprias delinquências e ficar impune enquanto bate tambor para punir o outro lado?
=》Ou pensa que a ameaça à democracia vem de mais de um lado e assume que há aqui até os que descaradamente fazem aliança com ditadores por uma Ordem Mundial autoritária enquanto no Brasil fala cinicamente que defende a democracia?

■■■Você é dos que acham que se o presidente da república for um miliciano basta negar que ele seja e acusar todo dia o adversário de ser corrupto e que a maioria vai concordar com você e vamos ter paz no Brasil?

■■■Ou você é dos que acham que se o presidente da república for um corrupto que roubou dinheiro público que se houvesse, por exemplo, sido usado para comprar equipamento de hospital em vez de virar Tríplex, Sítios ou gasto em campanha eleitoral milhares de doentes que chegaram aos hospitais na pandemia de Covid teriam sido salvos pelos aparelhos, mas para você basta negar que ele seja corrupto e acusar todo dia o adversário de ser miliciano que a maioria vai concordar com você e vamos ter paz no Brasil?

■■■Fala sério I:: os ~60% de brasileiros que rejeitam absolutamente ou demonstram rejeitar e desconfiar de Bolsonaro em algum grau vão aceitar Bolsonaro governando o Brasil? Ou forçar a barra para que todos tenham que engolir Bolsonaro, embora isso satisfaça o bolsonarista prejudica o Brasil?

■■■Fala sério II:: os ~60% de brasileiros que rejeitam absolutamente ou demonstram rejeitar e desconfiar de Lula em algum grau vão aceitar Lula governando o Brasil? Ou forçar a barra para que todos tenham que engolir Lula, embora isso satisfaça o lulista prejudica o Brasil?

ADEMAR AMANCIO disse...

Sei.