segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Cacá Diegues - Ainda o cinema nacional

O Globo

É preciso voltar a ouvir os cineastas brasileiros, que transmitem nosso testemunho do que somos

Terminei meu artigo do último domingo com uma frase muito simples que escancara as necessidades de sobrevivência do cinema brasileiro: “Os filmes estavam ficando cada vez melhores”, escrevi, “era preciso construir então a economia nacional que os iria expandir; e essa economia, como hoje, não poderia existir sem uma participação decisiva do Estado”.

O governo federal resolveu finalmente contribuir com essa “participação decisiva”, restabelecendo o compromisso dos que são responsáveis pela exibição de filmes no país. Cada sala de exibição teria que passar um filme brasileiro dentro de uma proporção de filmes estrangeiros ali exibidos.

Essa regra foi criada no Brasil no finalzinho do século XX por iniciativa de um grupo de cineastas convocado pelo governo de então para isso. Os filmes estrangeiros não eram em nada prejudicados pela iniciativa, pois o número de filmes nacionais que se beneficiavam da regra era proporcional ao número de seu resultado, em confronto com a renda total dos estrangeiros assinalada pelo valor de sua distribuição no país.

Assim, era esse o valor que servia à escolha dos filmes estrangeiros, a partir do que eles contribuíam com o Condecine, uma taxa que tinham que pagar para exibir seu produto entre nós. Como essa taxa também era paga pelo produto nacional, quase sempre era esse Condecine que financiava a produção nacional, sem necessidade de recorrer a valores de nosso orçamento nacional. Os filmes brasileiros eram então produzidos e exibidos graças a esses recursos, sem ter que recorrer a valores que iriam empobrecer as reservas do Estado.

Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, trazendo com ele tantos inimigos, como ele, de nossa independência cultural, esses critérios desapareceram dando lugar à descabida acusação de que o cinema nacional estava consumindo nossos recursos sem nos dar nada em troca.

Para sermos honestos, precisamos também dizer que a produção de filmes brasileiros entrou num parafuso de qualidade que não colaborou em nada com essa crise. Era sempre mais fácil dizer que tal filme não tinha rendido nada, alargando assim o buraco em que nos tínhamos metido, do que argumentar com a forma de seu financiamento e a verdade sobre quem estava contando o dinheiro que tinha sido economizado.

O cinema nacional estava condenado por sua falta de qualidade. Não se tratava mais de fazer um esforço para seguir ganhando prêmios e ótimas crônicas internacionais, como acontecia. Ou garantir sua boa recepção aqui e acolá, mas sobretudo ignorar essa repercussão em nome do desastre no mercado interno dos poucos filmes que eram feitos e vistos.

Ninguém queria saber o que era o Condecine, sua sabedoria e vantagens no sistema de produção e distribuição. Era mais importante acabar de uma vez com o prestígio de gente como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos ou Joaquim Pedro de Andrade. O Cinema Novo era uma invenção de uma geração de cineastas brasileiros para manter disfarçado seu fracasso na produção.

Mas os grandes filmes não serão esquecidos nunca. Apesar de tudo eles serão sempre lembrados seja em que circunstância for. “Deus e o diabo na Terra do Sol”, “Vidas secas” ou “Macunaíma” são filmes que, alinhados a muitos outros, formam o que deve ser amado e respeitado no cinema brasileiro.

E isso se deve aos cineastas brasileiros, os mesmos que indicam seu evidente talento nos filmes que são fartamente citados por aí, no mundo todo. Como os três citados acima e muitos outros que se encontram em nossas cinematecas ou sendo exibidos em caráter especial, em escolas ou telas especiais. É preciso voltar a ouvi-los como transmissores de nossos valores e sobretudo de nosso testemunho do que somos, tão bem impresso em seus filmes.

É preciso valorizar suas experiências e ouvir o que eles têm a nos dizer.

É preciso respeitar esses, além de outros artistas e intelectuais brasileiros capazes de compreender o país através do audiovisual, não importam o lugar e o tempo em que esse entendimento seja formado. Antes de tudo, é preciso ouvi-los balbuciar ou gritar o que têm a nos dizer.

 

Um comentário: