segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Educar para a democracia – Ricardo Henriques

O Globo

Os olhos do mundo estão voltados para a eleição de amanhã na maior economia do planeta e a possibilidade de vitória de um candidato que já demonstrou nenhum apreço pelas regras do jogo democrático causa temores de que a agenda populista e autoritária ganhe ainda mais impulso global.

Relatório deste ano do instituto V-Dem, vinculado à Universidade de Gotemburgo (Suécia), mostrou que a parcela da população mundial vivendo em países que se autocratizaram superou aquela habitando em nações que se democratizaram nos últimos 15 anos. Não se trata, portanto, de um fenômeno local, e para combatê-lo é fundamental refletir sobre o papel da educação na construção e preservação de uma cultura de convivência democrática.

Uma primeira constatação a ser feita é que a ampliação dos níveis de instrução não é garantia suficiente de que um país se torne mais democrático e tolerante. Apenas para ficar em um óbvio exemplo histórico, o nazismo foi germinado no início do século passado numa das sociedades mais escolarizadas da Europa à época. E o trauma da experiência do nazismo parece não ter gerado um aprendizado categórico da sociedade.

Hoje, seguindo uma receita similar — com ingredientes como a desinformação, discursos de ódio, enfraquecimento da confiança na ciência e no progresso e atitudes antiestablishment — a extrema direita recrudesceu tanto em países desenvolvidos quanto em nações pobres.

Com efeito, precisamos discutir sobre qual modelo educacional pode ser eficaz para garantir o desenvolvimento pleno de cada pessoa, incluindo tanto a formação para uma cidadania ativa e convicta dos valores democráticos como a preparação para o mercado de trabalho, em acelerada transformação.

O livro de François Dubet e Marie Duru-Bellat, “A escola pode salvar a democracia?”, de 2020, afirma que “a confiança na educação de massas não diz respeito apenas ao progresso na igualdade e ao aumento das competências dos estudantes. Diz respeito, também, à transmissão da cultura e dos valores democráticos. (...) Essa confiança baseia-se na crença de que a escola, ao mesmo tempo, educa e instrui”. Hoje, precisamos avaliar, enquanto sociedade, em que medida essa confiança está abalada.

Para além disso, supomos que a equidade no ambiente escolar é também parte importante dessa estratégia, pois altos níveis de desigualdade são prejudiciais às sociedades democráticas, por dificultarem, entre outros fatores, a construção de confiança mútua, a participação social, o respeito e a valorização da diversidade.

Como afirmou a professora e ativista norte-americana bell hooks, “temos de trabalhar para encontrar maneiras de ensinar e compartilhar conhecimento de modo a não reforçar estruturas existentes de dominação (hierarquias de raça, gênero, classe e religião). A diversidade de discursos e de presenças pode ser bastante valorizada como um recurso que intensifica qualquer experiência de aprendizado”.

Estratégias em que a educação contribua para o fortalecimento de uma sociedade democrática não deveriam ser conflitantes com o desenvolvimento de capital humano. A princípio, a economia tende a ganhar com o fortalecimento da democracia, como demonstraram, em artigo de 2019, os pesquisadores Daron Acemoglu, James A. Robinson, Pascual Restrepo e Suresh Naidu, ao constatarem que a democratização aumenta o PIB per capita em cerca de 20% no longo prazo. Os dois primeiros autores foram laureados neste ano, junto com Simon Johnson, com o Nobel de Economia.

No livro “O Corredor Estreito” (2020), Acemoglu e Robinson também argumentam que, se é verdade que o Estado precisa ser forte para manter a paz e fomentar o crescimento, é igualmente fundamental uma sociedade forte e mobilizada para controlar e limitar seus excessos. Isso só se faz com uma cidadania crítica e ativa.

A aquisição de conhecimentos essenciais básicos e o desenvolvimento de habilidades mais sofisticadas — como o pensamento crítico e o raciocínio analítico dedutivo — são fundamentais para que os cidadãos sejam mais capazes de entender fenômenos complexos e façam melhores escolhas individuais e coletivas. Mas a formação para a democracia exige mais do que isso. É preciso praticar a resolução de conflitos, a habilidade para conviver com argumentos divergentes e o debate qualificado desde cedo.

Isso não se faz por transmissão de conhecimento. Por definição, a escola pública é o local do convívio com as diferenças. Conflitos vão sempre existir, mas a maneira como os processamos é que pode diferenciar experiências autoritárias das democráticas.

Felizmente, temos experiências pelo Brasil de escolas que conseguiram melhorar seus indicadores de convivência e aprendizagem sem apelar para falsas soluções autoritárias. Precisamos que a escola seja uma instituição que fortaleça a democracia, assegure o desenvolvimento cognitivo, emocional e social e promova a cidadania. O caminho passa por aqui.

 

 


 

Um comentário:

Anônimo disse...

Infelizmente as nossas escolas públicas estão em péssimas condições Estruturais e pedagógicas Apesar dos discursos maravilhosos e boas intenções dos educadores de esquerda o resultado está sendo um desastre