Folha de S. Paulo
Escolha por moderação ou radicalização e
formas de encarar o empreendedorismo dividem ativistas e acadêmicos
Em outubro de 2018, a poucos dias do pleito
que elegeria Jair
Bolsonaro (PL) presidente, o rapper Mano Brown quebrou o
clima festivo em comício de Fernando Haddad (PT) no Rio de
Janeiro com uma fala crítica ao segmento. "Se somos o Partido dos Trabalhadores,
tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar
entender."
Seis anos depois, a mensagem de Brown volta a
circular nas redes sociais enquanto ativistas e acadêmicos se dividem a
respeito dos desafios que a esquerda encontra para se reconectar com o eleitor
e, principalmente, dos caminhos a serem traçados para reverter o problema.
O ponto de partida para a retomada da discussão foi a derrota do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) para o prefeito Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo. Com 40,65% dos votos, o psolista praticamente repetiu o mesmo percentual de 2020, quando também perdeu no segundo turno –agora, porém, tinha mais recursos e tempo de televisão.
A frustração vai muito além da capital
paulista. Neste ano, o PT conquistou 252 prefeituras no país, ficando atrás
de oito partidos, especialmente do centrão. Foi mais do que em 2020,
ano de pior
desempenho da sigla neste século, mas muito atrás das 637 que
ganhou em 2012, por exemplo.
Os motivos para as dificuldades da legenda
são complexos, afirma o cientista político André Singer,
professor da USP e um dos principais estudiosos do lulismo, termo que cunhou.
Para ele, o desafio é desenhar um programa de governo "nas condições
bastante difíceis que o capitalismo tardio impõe".
O professor chama a atenção para o processo
de desindustrialização em curso em todo o mundo, incluindo o Brasil. Processo
este que dissolve
os laços da antiga classe trabalhadora, que um dia se encontrou
nas fábricas e pôde se unir em torno de demandas de melhores condições de
trabalho e igualdade. Foi desse sindicalismo que nasceu o PT.
Com o afrouxamento
destes vínculos, já que muitos trabalhadores hoje atuam por conta
própria –o empreendedorismo teve enorme salto no país na última década–,
desenhou-se uma nova realidade desconectada da plataforma do partido. E para a
qual a esquerda precisa de adaptar, diz Singer.
"É uma realidade contra a qual a
esquerda vem lutando e não pode deixar de lutar. Mas precisa desenhar um
programa que dê conta", afirma.
Um exemplo positivo, diz ele, foi a ideia de
Boulos de criar
pontos de apoio para entregadores de aplicativo. A proposta foi
martelada no segundo turno, quando o deputado tentava crescer entre parte do
eleitorado do influenciador Pablo Marçal
(PRTB), que simbolizou para muitos a realização do desejo de
prosperar por mérito próprio, sem depender do Estado.
"Estes centros [de apoio] têm a
possibilidade de tornar uma atividade muito fragmentada numa atividade
coletiva", afirma o professor. "Podem se encontrar, trocar
experiências e até se organizar para enfrentar associativamente suas condições
de trabalho. Os mecanismos de solidariedade entre os trabalhadores precisam ser
reconstruídos, e nada nos diz que será simples."
Singer afirma, porém, que a ideologia do
empreendedorismo não pode ser adotada pelo segmento por ir contra as premissas
da esquerda, na medida em que produz mais desigualdade. "O sonho de uma
grande prosperidade, ao estilo do que possivelmente se aplica a Marçal, só vai
ser possível para uma minoria ínfima", diz.
Neste sentido, defende, é preciso desenhar
uma política econômica "capaz de provocar uma onda positiva", como
ocorreu, por exemplo, em 2012, quando a esquerda teve seu melhor desempenho em
eleições municipais. A base da pirâmide econômica ainda está com Lula,
lembra, mas o grupo perdeu tração entre setores intermediários, da classe média
aos trabalhadores de plataforma.
"O que a esquerda pode oferecer? Uma
perspectiva de país que supere o atraso e integre estes setores aos benefícios
da civilização [como condições de trabalho dignas e proteções
trabalhistas]", diz.
Após a derrota de
Boulos, voltou-se a discutir se candidatos de esquerda deveriam
fazer como ele e adotar um figurino mais moderado para tentar reverter uma alta
rejeição e/ou crescer entre o eleitorado de centro, disputado com a direita ou
a extrema direita.
Para Singer, em termos eleitorais, a tática
de moderação faz sentido, já que "setores importantes preferem uma
política mais cautelosa". "Porém, do ponto de vista de uma disputa
sobre orientação da sociedade, seria importante uma sinalização na direção de
um projeto mais amplo", diz.
O filósofo
Vladimir Safatle, professor da USP e suplente de deputado federal
pelo PSOL, é um dos que defendem que o momento histórico de crise econômica,
política e ecológica pede radicalização. "Não pode deixar a extrema
direita ser a única figura da ruptura. Num horizonte como este, só o discurso
de ruptura funciona", diz.
"Na política, muitas vezes precisa
radicalizar. Vão começar a ver você como uma alternativa real diante da
desagregação social. Marçal quase passou para o segundo turno [dessa
forma]."
Para Safatle, a tática de moderação é falida,
o que ficou explícito na derrota de Boulos com a mesma porcentagem de votos de
2020. "Não se fantasia um gavião de sabiá. Vão pensar que você não é uma
pessoa confiável", afirma.
Ele diz que a "direita oligarca" se
alia facilmente à extrema direita e que "é suicida organizar todas as suas
ações para um eleitor que nunca conseguiu conquistar".
Avalia, ainda, que moradores das periferias
se alinham a candidatos de centro-direita porque a ação da esquerda é
"completamente incoerente". Para Safatle, um discurso mais radical
não teria afastado esse grupo, que já votou no PT diversas vezes.
"O último movimento em relação ao
Marçal, naturalizando
o empreendedorismo, só mostra a fraqueza da nossa posição",
afirma. "Deveríamos estar falando que este é um modelo de brutalização
social, cada um por si, não tem mais segurança de nada. Tinha que estar
trabalhando no inverso."
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado,
diretora do laboratório de economia digital e extremismo político da University
College Dublin, na Irlanda, diz que a esquerda trata o empreendedorismo como um
tabu, deixando o
campo aberto para a extrema direita, mas que há como empreender
incentivando uma lógica coletiva.
"Tem muitas formas de fazer que não
individualista. Como a esquerda ignora esse tema, acaba sendo suprido por uma
rede de influenciadores alinhados à direita que fazem esse treinamento de
grande parte da população", afirma.
Pinheiro-Machado defende um plano nacional de
empreendedorismo popular e afirma que as mudanças nas relações de trabalho não
têm volta, o que vai obrigar a esquerda a se posicionar.
"As pessoas estão desesperadas buscando
renda extra no Instagram porque precisam, porque querem, porque merecem",
diz. "Não dá para ter um imaginário de pleno emprego, que as pessoas vão
viver com salário mínimo, ser sindicalizadas [...]. O mundo está em plena
reconstrução."
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