Folha de S. Paulo
[RESUMO] O texto a seguir é o prefácio
de Sérgio Augusto para o livro "O Cinema de Perto", que reúne a
produção em prosa e verso de Carlos Drummond de Andrade sobre o tema, publicada
em jornais de 1920 a 1980. Um apaixonado cinemeiro, termo que preferia a
cinéfilo, o poeta escreveu sobre seus filmes favoritos, fez declarações de amor
para atrizes (Greta Garbo antes de todas), defendeu as vantagens do preto e
branco em relação às cores, combateu a censura, celebrou a geração do cinema
novo e torceu o nariz para figurões da modernidade das telas, como os cineastas
Godard, Antonioni e Bergman.
Quem se aventurar a escrever a história da
crítica de cinema praticada por poetas dificilmente encontrará um ancestral do norte-americano Vachel Lindsay (1879-1931).
Um dos fundadores da poesia cantada moderna,
o jazz poet de Illinois também foi o primeiro poeta a escrever sobre filmes e
estética cinematográfica de que se tem registro, inclusive sob a forma de
livro: seu pioneiro "The Art of the Moving Picture" foi posto
à venda em 1915, quando Hollywood era pouco mais que um matagal seco e dispunha
de apenas um estúdio de filmagem em funcionamento.
Já pelas bandas de cá, só na década seguinte
o modernismo abriria espaço, na revista Klaxon, para que dois poetas da terra,
Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, dessem vazão em público e letra de
fôrma à sua paixão pelo cinema.
Mário de
Andrade escreveu sobre filmes, cineastas e tópicos cognatos entre
maio de 1922 e janeiro de 1923, por vezes oculto por um pseudônimo. Guilherme de Almeida foi mais longe, assinando críticas
de filmes periodicamente no jornal O Estado de S. Paulo, entre 1926 e 1942, e
editando um livro, "Gente de Cinema", em 1929.
Tempos depois, Vinicius de Moraes, o concretista José Lino
Grünewald e Van Jafa, este mais comprometido com a crítica
teatral diária, ampliaram a linhagem em variados veículos da imprensa carioca;
noves fora Caetano Veloso, que, antes de virar compositor, foi crítico de
cinema na Bahia.
Antes deles, porém, outro poeta, justo o maior de todos, Carlos Drummond de Andrade, já se dedicava, intensamente, a refletir e escrever sobre cinema e os sortilégios de seus ídolos. O poeta de Itabira foi um ativo cronista cinematográfico em publicações de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, ao longo de praticamente seis décadas.
Tinha apenas 17 anos ao lograr uma
oportunidade no modesto diário Jornal de Minas. Emplacou, em 15 de abril de
1920, um comentário sobre "a moral e o cinema", motivado pela
histérica perseguição que a Liga Pela Moralidade mineira moveu contra o filme
norte-americano "Diana, a Caçadora", após sua estreia no cinema
Pathé, de Belo Horizonte.
Também colaborou no Diário de Minas, quando
os filmes ainda eram mudos e Carlitos era chamado de Carlito, fixando-se em
seguida no Minas Gerais, órgão oficial do governo do Estado, no qual publicou
mais de uma centena de crônicas entre 1929 e 1934, oculto a princípio sob os
pseudônimos de Antônio Crispim, Barba Azul e Mickey (como o camundongo
recém-inventado por Walt Disney).
Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934,
novos horizontes se lhe abriram na imprensa carioca e paulista. O prestigioso
matutino carioca Correio da Manhã abrigou seus escritos entre 1954 e 1969. Em
seu derradeiro mirante, no Jornal do Brasil (1969-1984), Drummond completaria
30 anos de atividade ininterrupta, à base de três crônicas por semana, quase
sempre em prosa, com ocasionais observações e devaneios em versos.
Até haicais ele cometeu ao refletir sobre a
"sétima arte" ou a "décima musa", expressões que, aliás,
sempre evitou usar, assim como nunca se identificou como "cinéfilo",
francesismo, a seu ver, pernóstico e com similar nacional.
Éramos todos "cinemeiros"
simplesmente, prosaicos fãs de cinema, "esse complemento audiovisual que
consola, estimula, distrai, chateia, irrita e fascina", nas palavras do
poeta, fiel devoto da mais poderosa (e politeísta) religião laica do século
passado.
A ida ao cinema era a sua missa dominical.
Buscava viver outra vida "sem perder as garantias da nossa". Juntar
as duas e corrigir uma com os recursos infinitos da outra era sua mais
infalível receita existencial.
Idolatrava mais as estrelas do silencioso do
que suas sucessoras na mitologia cinematográfica, por ele injustamente
reduzidas à categoria de "mitinhos" para espectadores adolescentes.
Às suas favoritas, fez declarações de amor
explícitas, ora e vez incitando-as a recusar papéis não condizentes com seu
tipo físico ou sua aura, como fez numa crônica de 1971, para o Jornal do
Brasil, tão logo soube que o italiano Luchino
Visconti tentava convencer Greta Garbo a voltar às telas, por
ela abandonadas 30 anos antes, no papel da proustiana rainha de Nápoles numa
adaptação cinematográfica de "Em
Busca do Tempo Perdido". "Nem sequer recuse, responda com
seu majestoso silêncio", recomendou o cronista.
Com frequência imaginava suas musas presentes
na vida real, a encher de magia e glamour a insipidez provinciana das Alterosas
e até mesmo a cosmopolita paisagem carioca. Sublimou Clara Bow embriagando-se
com champanhe num baile do Automóvel Clube do Rio, Eleanor Powell dançando
"num lugar feito de nuvens cinzentas", e Romy Schneider dando sopa na
mesma avenida Atlântica de Copacabana em que vislumbrou um desfile com os
artistas da tela mortos naquele ano, devidamente anunciados por um alto-falante.
Talvez só num livro coubesse tudo o que em
verso e prosa escreveu a respeito de Greta Garbo,
a suprema deusa do seu devocionário. Definiu-a, em ocasiões
diversas, como "mulher-fábula", "mulher enigma",
"esfinge", "mito lunar", "ninfa-nenúfar".
Admirava a renitência com que cultivava sua persona etérea e reclusa
("trancada em si mesma para preservar a intangibilidade do mito"),
gostava até de seus "filmes deliquescentes", e chegou a incentivar os
colegas de ofício a escrever sobre ela quando estivessem sem assunto.
Para protegê-la de qualquer ameaça, criou a
Sociedade dos Templários de Greta Garbo, cuja presidência entregou a Manuel
Bandeira, cabendo a Stéphane
Mallarmé a "presidência metafísica" da entidade, a despeito de o poeta francês ter morrido sete anos antes de Greta Lovisa
Gustafsson nascer.
Sua garbolatria desinibiu-se de vez em 1955,
com a invenção de uma misteriosa viagem da atriz sueca à capital mineira,
ocorrida 26 anos antes. Mais que misteriosa, delirante.
Segundo Drummond, em outubro de 1929, Garbo
veio "dar com sua angulosa e perturbadora figura" em Belo Horizonte. O poeta Abgar Renault soubera da chegada da atriz, disfarçada de
naturalista nórdica, por intermédio de um professor de sueco radicado nos
Estados Unidos, e não resistiu à tentação de informar Drummond imediatamente.
O cinemeiro de Itabira não apenas ciceroneou
a estrela pela cidade e arredores como se esmerou em mantê-la numa redoma,
isolada até do círculo mais íntimo de amigos, e ainda a presenteou com um
papagaio furtado do Parque da Cidade, que teria aprendido a falar "Hello,
Greta!" e imitar a risada da atriz.
"Vimos descer do carro-dormitório,
dentro de um capotão cinza que lhe cobria o queixo, e por trás dos primeiros
óculos pretos que uma filha de Eva usou naquelas paragens, um vulto feminino
estranho e seco, pisando duro em sapatões de salto baixo" —assim Drummond
descreveu a chegada de Garbo à Estação Central de Belo Horizonte.
Por trás de seu par de "óculos
pretos", ela olhou para ele como a um carregador, e disse: "I want to
be alone." Revelou-se, contudo, cordialíssima, acrescentou o cronista.
Drummond admitiu que toda aquela história não
passava de uma tremenda lorota na crônica "Sonho Modesto", mas o fez
levando a brincadeira adiante. Segundo ele, a confissão tornou-se obrigatória
apenas depois que o jornalista Pompeu de Sousa tentou persuadi-lo a relembrar o
episódio numa entrevista ao Diário Carioca, suplementada por fotos, fac-símiles
de bilhetes da atriz e outros souvenirs igualmente inexistentes.
Em defesa de sua musa suprema, Drummond
terçou armas com Vinicius de Moraes, fã de Marlene
Dietrich, por causa de um artigo de Vinicius no Diário Carioca,
que, na opinião de Drummond, menoscabava o mito de Garbo, ousando comparar
"uma mulher (a sra. Marlene Dietrich) com uma pura e transcendente
abstração (Greta Garbo)".
Considerava a atriz de "O
Anjo Azul" (1930) um mito puramente exterior, um fenômeno
de fotogenia forjado em jogos de luz por um Pigmaleão vienense, chamado Josef von Sternberg.
Além de templário de Garbo, Drummond
autodeclarou-se segundo tesoureiro perpétuo da Sociedade dos Amigos de Joan
Crawford, xodó de outro poeta mineiro, Emílio Moura, que
cuidava do livro de atas da agremiação.
É bem provável que Crawford, reconhecida por
Drummond como "a única figura ou instituição que passou pela Segunda
Guerra Mundial sem perda substancial de prestígio", tenha sido a segunda
divindade do seu Olimpo.
Deixou-se enfeitiçar por sua
"inteligência sensual", sobretudo por seus olhos grandes, meio
esbugalhados, pelas sobrancelhas espessas, pela boca longa e úmida, pelo rosto
quadrado, que, admitia, não era bonito. "Mas tudo que amamos verdadeiramente",
ressalvou, "não é bonito, é intenso, e dói".
Comparou-a a uma "orquídea, cravo,
trescalante", e, esgotado o jardim, a um verso de Baudelaire,
a outro de William Blake e,
turbinando a hipérbole, a uma equação einsteiniana.
Com Crawford, sublimou uma conversa, a bordo
de um navio, mas não a viu pessoalmente em nenhuma das vezes em que a atriz e
empresária (herdeira da Pepsi-Cola) visitou o Brasil. Dela se despediu com um
poema in memoriam, em maio de 1977, preito que não pôde prestar à sua amada
Garbo, que viveu mais três anos do que ele.
De todo modo, foi com ela na cabeça que
Drummond escreveu seu penúltimo poema, em 1987. Àquela altura, nem precisava mais confessar que havia "imaginado, maquinado,
vestido e amado" Garbo, mas o fez, para que não pairasse qualquer dúvida a
respeito.
Das estrelas que lhe apertaram a mão no plano
da fantasia, Catherine
Deneuve parece ter sido outra das que mais vivamente o
impressionavam. Supostamente apresentados em Paris, teriam mantido uma breve
correspondência, tão platônica quanto fictícia, envolvendo pedras semipreciosas
colecionadas pela atriz e abundantes na fazenda de soja que Cyro dos
Anjos tinha em Montes Claros, no norte de Minas.
Saudosista, nostálgico, eclético em suas
preferências, Drummond era visceralmente contrário à dublagem de filmes
estrangeiros, prática que, segundo ele, "serve antes de incentivo à
cristalização do analfabetismo, pela preguiça mental".
Ao contrário de Vinicius de Moraes, não se
meteu na polêmica defesa do cinema mudo frente ao sonoro. Ligou-se mais no
confronto entre os filmes
em preto e branco e em cores. Nos primeiros, a seu ver,
"as coisas feias doem menos, e as bonitas continuam bonitas, com
possibilidade de se vestirem com roupagens ainda mais belas, criadas pela nossa
fantasia".
Achava o cinema em Technicolor "de um
cafajestismo que ofende nosso pudor visual" e não recebeu o CinemaScope e
outras telas esticadas com chá e simpatia.
Adentrou a década de 1960 remando contra a
maré, a torcer o nariz para os figurões da modernidade cinematográfica. Chegou
a pedir uma "vacina cultural contra os gênios cinematográficos, tipo Godard, Pasolini, Antonioni",
que, segundo ele, "costumam tirar à gente o gosto de ir ao cinema, devido
à genialidade excessiva de suas criações". Nem sequer de Bergman livrou
a cara.
Sempre cordial com o cinema brasileiro e
atento aos seus eternos problemas de produção e distribuição, qualificou um
plano salvacionista elaborado pelo cineasta Alberto
Cavalcanti na década de 1950 de "bem-intencionado, mas
inábil", pela possibilidade de manter nossa indústria de filmes controlada além da conta pelo governo.
Era uma voz permanentemente solidária contra
a censura e um entusiasta do que de melhor o cinema brasileiro produziu nas
últimas quatro décadas do século passado.
Defendeu e celebrou Nelson
Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Ruy
Guerra e, com especial desvelo, Joaquim Pedro
de Andrade, autor de "O
Padre e a Moça", filme de 1966, inspirado num fragmento de seu
poema "O Padre, a Moça", que a censura tudo fez para proibir em todo
o território nacional, por considerá-lo "imoral e anticlerical".
Também daquela vez os dois Andrades venceram a parada.
*Jornalista e escritor, autor dos livros
"Este Mundo É um Pandeiro", "E Foram Todos Para Paris",
"Lado B", "As Penas do Ofício", "Cancioneiro
Jobim", entre outros
O Cinema de Perto: Prosa e Poesia
Preço R$ 89,90 (308 págs.)
Autoria Carlos Drummond de Andrade
Editora Record
Organização Pedro Augusto Graña Drummond
e Rodrigo Lacerda
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