domingo, 19 de outubro de 2008

Um pouco de futurologia


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Desta vez, o que estamos vendo é outra coisa: a unidade européia. A Inglaterra se afastou de Bush e se aproximou da União Européia


Não gosto de fazer previsões categóricas. É uma adivinhação, embora dê direito a quem acerta de extravasar o próprio narcisismo com aquele famoso “eu não disse?” Prefiro analisar os fatos, imaginar cenários e esperar que um deles se realize. Mesmo assim, às vezes, erro feio. Por isso, perdoem-me a futurologia. Serei brevíssimo.

Obama

O governo Bush é um fracasso. O epicentro da crise econômica mundial está nos Estados Unidos, com o colapso de seu mercado imobiliário e o derretimento de Wall Street. Fala-se muito que o mercado financeiro é uma economia virtual, descolada da economia real. Até que ponto a outra face dessa crise não é o esgotamento do esforço de guerra norte- americano, cujo complexo militar-industrial manteve sua economia real aquecida? Se o capital financeiro é uma espécie de fusão do capital bancário com o capital industrial, não se pode separar uma coisa da outra.

Será tão irreversível o declínio norte-americano? A hegemonia dos Estados Unidos entrou em decadência por vários motivos. Dois são mais relevantes: primeiro, Bush liquidou a sua liderança moral no mundo ocidental; segundo, o poder de consumo global está se deslocando do Atlântico para o Pacífico. Mas a economia ianque ainda é a mais poderosa do mundo. E o “sonho americano” não acabou. A provável eleição do candidato democrata Barack Obama vai resgatá-lo com seu sorriso de Gagárin, o primeiro a ver a Terra azul. Quem imaginaria, há 40 anos, um afrodescedente na liderança dos EUA, quando em algumas cidades do Mississipi a mãe e o pai do novo presidente dos Estados Unidos não poderiam sequer usar o mesmo bebedouro ou viajar lado a lado no mesmo banco de ônibus? Esse sonho é isto: qualquer cidadão pode chegar no topo pelo próprio mérito. Só valia para os brancos, agora está valendo para qualquer um. É um recado dos americanos de que continuam sendo uma grande nação.

Obama está falando que o americano comum deve enfrentar a crise econômica com muito sacrifício e trabalho, acabar com a dependência ao petróleo e desenvolver um esforço de paz no mundo. Há retórica nisso, mas uma significativa mudança de rumo na política norte-americana de fato ocorrerá. E seu impacto será mundial. No plano econômico, os EUA vão enfrentar a crise com uma dura recessão, da qual sairão à frente da recuperação econômica mundial. Obama quer superar a dependência ao petróleo do Oriente Médio e construir um novo modelo energético. Isso significa um novo ciclo de expansão, em busca de outro padrão tecnológico, um modelo mais ecológico. Quais as conseqüências em termos de conversão da indústria, do aproveitamento de matérias-primas e da produção de bens de consumo duráveis e não- duráveis? Os americanos têm recursos materiais e humanos para serem bem-sucedidos. A Europa também. Mas qual será o impacto no resto do mundo?

Brown

Primeiro-ministro britânico, Gordon Brown emerge da crise econômica como um grande estadista europeu. Era um político desgatado e sem carisma, mas foi ágil e firme. Surpreendeu: ele é o autor da proposta de intervenção dos governos europeus no sistema financeiro e defende um novo acordo de Bretton Woods. Assinado em 1944 pelos países mais industrializados na época na cidade americana que lhe empresta o nome, o acordo estabeleceu as regras atuais das relações comerciais e financeiras internacionais. Os ingleses sabem das coisas, inclusive o que é decadência e perda de hegemonia.

As grandes depressões das décadas de 1890 e 1920 foram as maiores crises capitalistas da história. Resultaram em duas guerras mundiais, em plena Europa. Desta vez, o que estamos vendo é outra coisa: a unidade européia. A Inglaterra se afastou de Bush e se aproximou da União Européia. O principal mérito de Brown foi romper a blindagem de certa “oligarquia financeira” que havia se colocado — como em todos os demais países capitalistas — acima dos estados nacionais, da política e de suas instituições. A discussão sobre a política monetária e o funcionamento do mercado financeiro estava interditada à política propriamente dita, mesmo na esquerda européia. O que vem por aí é uma grande reforma financeira, para regulamentação do mercado de capitais e sua subordinação aos estados nacionais. Sem isso, a economia global não entrará nos eixos. É o que o presidente francês Nicolas Sarkozy está chamando de “refundação” capitalista.

Para encerrar, confesso minhas preocupações com a China, a Índia e a Rússia. Os chineses não têm massa salarial para absorver a produção que exportam para o mundo em caso de uma grande recessão. A Índia também depende muito do comércio exterior e da mão-de-obra barata. A Rússia terá problemas com a redução do consumo e dos preços do gás na Europa. Mas essas três grandes nações, assim como o Brasil — que está em melhor situação mas não vai tirar a crise de letra — são assunto para outra coluna.

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