Virou gênero literário: analistas políticos acreditam saber, mais que os partidos, o que eles devem fazer. Sei que é pretensioso, mas muita gente o faz. Vamos lá, então. Já insisti, aqui, na necessidade de uma forte oposição democrática - e na inapetência do maior partido de oposição, o PSDB, para o trabalho que isso exige. Ora, vejo ao menos três possibilidades de uma boa oposição no Brasil. A primeira em outros tempos se chamaria liberal, a segunda industrial e a terceira, sustentável. Hoje me deterei na primeira.
Uma oposição liberal deve assumir um princípio essencial do capitalismo: a liberdade que de fato importa, a do indivíduo, se realiza quando ele empreende. A iniciativa de cada um para florescer na vida é da pessoa que chamávamos de empresário, que está sendo substituída pela figura do empreendedor. Empresário é um substantivo - na linguagem corrente, o detentor do capital, que se opõe ao trabalho. Já empreendedor é um adjetivo, quase sempre elogioso. Uma "pessoa empreendedora" extrapola o mundo dos negócios e mexe com todas as dimensões de vida. É quem age com iniciativa e criatividade para modificar sua existência e seu entorno. Em números, o estoque possível de empresários é limitado, ao passo que, em tese, qualquer pessoa pode ter uma atitude empreendedora.
Uma oposição focada no empreendedorismo estimularia, claro, as pessoas a empreender. Este é um projeto econômico, mas que pode ter um foco social. Há cada vez mais empreendedores sociais, que não buscam necessariamente o ganho pessoal. Conheço alguns. Mostram preferências partidárias bem diversas. Há petistas e há quem goste de "Veja". Eis algo positivo: o empreendedorismo embaralha as categorias de direita e esquerda. Cada vez mais prioriza a geração de ativos sociais, em conjunto com os econômicos, isto é: geração de renda e crescimento humano. Uma ONG pode ter outras metas. Mas, para melhorar a vida das pessoas, elas terão que ganhar seu dinheiro. Serão educadas para melhorar de salário ou criar seus negócios. São as duas vias principais, não necessariamente incompatíveis.
O liberal está cedendo lugar ao empreendedor
A tendência é serem pessoas práticas, que arregaçam as mangas para mudar de vida. Já o lado preocupante é que raramente traduzem a militância social em linguagem política. Se há empreendedores votando à direita ou à esquerda, é porque não converteram sua ação social em consciência política. Sua escolha partidária pouco tem a ver com aquilo a que dedicam a vida. É como se houvesse um abismo entre sua dedicação a um projeto e a tradução dele em proposta para alterar a balança do poder. No dia em que traduzirem sua ação própria em linguagem política, e o fizerem de maneira coletiva, hão de se espantar com sua força.
Como, mais que repetir ideologias, eles têm experiência prática e conseguem melhorar muitas vidas, estão formando um vasto contingente de quadros para dirigir - um dia - a sociedade brasileira. Mas isso depende de almejarem o poder político, o que não está no horizonte; caso se organizem, poderão ser o embrião de uma agremiação poderosa. Enquanto isso não acontece - e talvez nunca aconteça -, exprimem os valores seguintes.
O principal é a autonomia. Cada vez mais se enfatiza que o principal é ensinar a pescar. Iniciativas assistenciais cedem lugar à afirmação dos direitos humanos, sejam eles de natureza econômica ou social: o importante é a luta pela afirmação de uma equidade. Isso é emancipar as pessoas (ou promover seu "empowerment"). Elas devem ser autônomas, para não dependerem mais de ninguém. Doar-lhes coisas é menos importante do que mudar seu modo de perceber a vida. Na esfera econômica, para fazer isto funcionar e crescer, mudanças legais são desejáveis. O Simples é o sistema tributário do empreendedor. Parece bom, barato e simplificado. Mas pode ser ampliado a outras categorias. Mesmo com o Simples, a empresa lida com alguma burocracia - que pode ser reduzida. Mais grave é que a pequena empresa responda por menos de 20% de nossa economia, quinhão bem inferior ao que atinge na Itália e Alemanha (Paulo Feldmann, "Pequena empresa não ganha eleição", Folha de S. Paulo, 20/1/2012). Entraves legais dificultam sua participação em concorrências públicas e a exportação de seus produtos. São questões específicas, de solução não tão difícil, mas que enfrentariam os interesses das grandes empresas, que hoje têm garantia de acesso ao mercado estatal e estrangeiro.
Isso permite uma conclusão curiosa. O empreendedor - ou o pequeno empresário, do qual, simplificando tudo, o aproximei - não precisa de muita coisa. Do Estado, ele quer desburocratização e acesso. Ora, se isso lembra a ética capitalista estudada por Max Weber, por outro lado essas demandas podem ser atendidas por qualquer governo. Ideologicamente, sendo detentor de capital, o empreendedor poderia ser o embrião de um autêntico partido liberal. Mas nada impediria que sua posição fosse atendida pelo próprio PT.
Aliás, a palavra "liberalismo", marcada à direita, parece ceder lugar a "empreendedorismo", mais ampla. O empreendedor está mais para ter uma posição do que ser oposição. Só que nenhum partido lhe dá muita importância. Nem ele mesmo se dá, pois não se torna ator político. Mas, caso se organize, seu caminho poderá estar entre o partido próprio - que não seria de massa como o PT, nem de líderes como o PSDB, mas de uma massa de pequenos líderes - e sua absorção ou cooptação por uma coligação inteligente, que perceba sua importância para o País e integre seus membros para melhorar a gestão do Estado e da sociedade, com ganhos sociais significativos.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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