• Momento atual guarda semelhanças com fim do Império
- Valor Econômico
O diagnóstico de que o país vive uma grave crise política está disseminado. Na esteira dele costuma vir caudatária a frase magna do ex-presidente Lula: "Como nunca antes nesse país." A conjuntura atual, diz-se, é sem precedentes porque embola várias crises numa só: da economia, dos partidos, das instituições políticas, de governo, de legitimidade. Embora o momento tenha óbvias peculiaridades, um olho na história descortina parentesco com outras quadras críticas.
O recuo imediato que se tem feito é ao processo de impeachment do ex-presidente Collor e, um pouco mais para trás, às circunstâncias que desembocaram no suicídio de Vargas. Nos dois casos, a tópica da corrupção e a proximidade do mandatário com corruptos e corruptores assoma como o estopim da crise. Há, contudo, características da situação corrente que a aproximam mais de outra, longínqua, a de fins do Império e inícios da República.
Um ponto de contato é o gênero do governante. Dilma é a primeira presidente da República, mas a princesa Isabel foi, por três vezes, a regente do Império. Na última delas, assinou - com muito atraso - o decreto final de abolição da escravidão, pelo qual é lembrada. Contudo, durante suas regências, Isabel foi vezes sem conta rebaixada, até pelo pai, por ser uma mulher. Dela se disse que seria incapaz do governo sem a mão forte de um ministro ou do marido. Há mais de um século entre a condição feminina nos tempos do Império e agora, mas várias das críticas endereçadas a Dilma, como antes a Isabel, tem relação direta com a questão gênero. O que num mandatário varão se veria como determinação, vê-se nela como teimosia. O pulso firme no comando, sempre positivado na chefia masculina, é lido como centralismo descomunal. E os predicados físicos de sua pessoa, se gorda, se magra, se penteada ou descabelada, ou de sua indumentária, se elegante ou desalinhada, nem seriam assunto se fosse homem. Longe de mim dizer que a crise tenha o gênero por causa, mas não é componente irrelevante dela o fato de termos uma presidente, como nos Estados Unidos não é irrelevante que Obama seja negro.
Outra característica desta conjuntura que lembra os fins do Império é o fato da discussão de uma agenda redistributiva ter sido solapada por outra que privilegia a corrupção. Durante os governos Lula e no primeiro de Dilma, mesmo a oposição de corte mais liberal se rendeu à agenda social, em loas a programas como o Bolsa Família, que ninguém ousou criticar. Somou-se uma reestruturação da pirâmide social brasileira, que não se deveu só a políticas petistas, mas seu peso tampouco se pode negar. O debate público teve este foco durante as eleições, mas, logo desviou-se para a tópica da corrupção. Os "malfeitos", como os chama a presidente, merecem investigação, combate, punição, mas é preciso atentar para o fato de que sua tematização exclusiva roubou a cena da agenda redistributiva e de seus próximos passos, como o acesso à educação de qualidade. Nisto também o contexto atual ressoa os tempos da princesa. Logo após o decreto de fim da escravidão, o movimento abolicionista reivindicou os outros esteios de sua agenda, educação, salário mínimo e concessão de pequena propriedade para ex-escravos. Mas essa agenda foi solapada por denúncias de corrupção - uns negócios mal parados com os irmãos Loyos, uma versão oitocentista de negócios como os investigados pela Lava-Jato. Como Dilma, Isabel não foi acusada de se locupletar pessoalmente, mas pesou sobre a princesa, como pesa sobre a presidente, a pecha de incompetência para gerir o próprio governo, por ignorância do que deviam acompanhar com olho de lince. Como hoje, várias das acusações tinham fundamento, mas por todas as luzes nelas ajudou os inimigos da agenda redistributiva à empurrá-la para as sombras. E, como no ano final do Império, quando outro assunto assoma na arena pública é sempre a imperiosa economia.
Terceira semelhança com esses tempos longínquos diz respeito à impopularidade do governante. Ao contrário do que se propala, a princesa Isabel foi festejada por pouco tempo e não por todo mundo. Quando abraçou, atrasada, a abolição que lhe batia às portas, em fins de 1887, ganhou apoio dos seus até então críticos, os abolicionistas, mas perdeu o de seus até então apoiadores, os escravistas. A princesa acumulava ainda antipatias entre os secularistas, por seu catolicismo extremado, e entre os nacionalistas, que antipatizavam com seu marido francês. E, claro, por ser uma senhora, o que levou alguns a tentarem pulá-la e passar o trono a seu sobrinho varão.
Os dias que correm ressoam também a conjuntura subsequente à queda do trono. Assim como Dilma, Prudente de Moraes, o primeiro presidente civil da República, enfrentou perrengue dos grandes. Com oposição de todo lado, mal governava e chegou a se refugiar numa licença de saúde. Nunca o saberemos, pois eram inexistentes as pesquisas de opinião, mas terá sido talvez o mais impopular de todos os presidentes brasileiros. Oposição, jornalistas e até seu próprio partido viviam a reduzi-lo a pó de traque. A grita incentivou uns a ensaiarem derrubá-lo por vias institucionais. E, outros a prescindir delas e tentar direto o assassinato. O tiro saiu pela culatra, ou melhor, matou o homem errado - um heroico ministro. A violência gerou o oposto do pretendido pelos críticos do governo: em vez de cair, o presidente se fortaleceu. Setores mais moderados se acercaram de Prudente e lhe deram apoio mínimo para que retomasse as rédeas do governo. Presidente fraco, mas presidente assim mesmo, que transferiu a faixa sem quebra das regras institucionais. Assim se garantiu a consolidação da república civil - contra a volta dos militares, que então, como agora, alguns demandavam.
Oxalá o desfecho do enredo contemporâneo fique mais para o de Prudente, que concluiu seu mandato, que para o de Isabel, que perdeu seu trono.
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Angela Alonso é professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
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