Editada no apagar das luzes do conturbado ano legislativo de 2015, a Medida Provisória 703, de 18 de dezembro, abriu uma avenida enorme para que empresas acusadas de corrupção envolvendo dinheiro público continuem fazendo negócios com o Estado normalmente, com punição de baixo custo - se houver. A MP modifica parte das condições da lei anticorrupção (12.846, de agosto de 2013) em relação aos acordos de leniência, desfigura seu sentido original e permite o amortecimento das multas e demais penalidades que recaem sobre atos ilícitos.
Concebida para dar rapidez aos acordos de leniência e, assim, "salvaguardar a continuidade da atividade econômica e a preservação de empregos", a MP é a expressão legiferante do desejo da presidente Dilma Rousseff de "punir CPFs" e não CNPJs. Há o risco de os dois saírem ilesos. A celeridade nos acordos tem o objetivo de manter as empreiteiras envolvidas na Operação Lava-Jato nas concorrências e obras públicas para evitar, na visão do governo, uma ruinosa paralisia geral das obras de infraestrutura.
As mudanças foram precisas, com alvo certo. As condições cumulativas estabelecidas pela lei 12.846 para que um acordo de leniência seja celebrado era a de que a pessoa jurídica "seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito" e que "admita sua participação" nele. Ambos sumiram na MP e deram lugar às exigências de que a empresa cesse de atuar ilicitamente, coopere com as investigações e crie ou melhore programas de compliance.
A diferença é enorme. As exigências da lei anticorrupção, nesse ponto em linha com a experiência internacional, estimulam os infratores a romperem a cumplicidade com outros e a confessar, sob pena de punições mais severas. As demais empresas envolvidas que procurem depois a leniência são levadas a apresentar novos ilícitos para investigação. Essas regras são complemento vital para a delação premiada, na qual se baseia grande parte do poder investigativo da Lava-Jato.
Têm razão os procuradores da Lava-Jato em se preocupar. A delação, deixa de ter como benefício a certeza da redução de penas, e torna-se um contornável inconveniente para os executivos. Agora há motivos para que neguem até o fim a prática de atos ilícitos, porque a boia de salvação do acordo de leniência lhes poderá ser estendida a qualquer momento do processo administrativo. Segundo a MP, "A proposta do acordo de leniência poderá ser feita mesmo após eventual ajuizamento das ações cabíveis".
Tornou-se sedutora para as empresas a possibilidade de que o Ministério Público e a Justiça façam seu trabalho sem sua participação, para que possam buscar, com boas chances de sucesso, se desvencilhar de boa parte das penas mais à frente. Não há mais sequer a necessidade de admissão de culpa.
A primeira empresa a tentar acordo de leniência em determinado processo, terá agora uma vantagem adicional para si e não para a sociedade: zero de multas e ficha quase limpa. Rege a MP: "A redução (das multas) poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo". A lei anticorrupção previa abatimento de até dois terços das penalidades.
A lei previa que, ao assumir a responsabilidade na esfera administrativa, a empresa não estaria livre automaticamente das consequências na esfera judicial: dissolução, perdimento de bens, direitos e valores obtidos com a infração, suspensão das atividades, impossibilidade por até 5 anos de receber subsídios ou créditos de bancos públicos etc. Mas a MP passou a borracha nisso também, redigindo de outra forma o artigo 18. Manteve a possibilidade de responsabilização judicial, "exceto quando previsto expressamente na celebração do acordo de leniência".
No limite, as empreiteiras envolvidas na Lava-Jato poderão sair do processo como entraram, apenas pagando o que foi comprovadamente obtido de forma indevida e com votos de bom comportamento no futuro.
A MP deixa o Ministério Público em posição indefinida na questão. O artigo 12 diz que os entes federados, "de forma isolada ou em conjunto com o Ministério Público" poderão fazer acordos. Segundo o governo, a MP só repetiu projeto em tramitação no Senado, o PL 3636 que, no entanto, estabelece a atuação obrigatória do Ministério Público em todos os acordos de leniência. Como está, a MP 703 pode "limpar" os acusados pela Lava-Jato.
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