- O Globo
‘Estou cansado” — ele disse, quase num murmúrio, quando entrava no carro. Confirmavam a exaustão o rosto rubro, a expressão decaída e a camisa azul ensopada pelo calor. Assistiu mudo e saiu calado da cerimônia de adeus do poder. A “Era Lula” terminou às 6h34m de ontem, atropelada pelos votos de 70% dos senadores, dissipando-se numa efusão de ressentimento, melancolia e incerteza ao meio-dia na porta do Palácio do Planalto. Dilma Rousseff discursou, se emocionou e distribuiu flores às pessoas, que coloriram de vermelho sua despedida. Lula, em desânimo nunca antes visto em público, economizou até no aceno.
Mil e trezentos metros adiante, o deputado do PMDB baiano Geddel Vieira Lima era a imagem de felicidade. Com o seu sorriso pleno das gordas bochechas, que distendiam a vasta papada branca sobre o colarinho azulado, Geddel dominou a fotografia de um momento inesquecível para o vice Michel Temer, o recebimento da notificação do Senado para “assumir imediata e interinamente a Presidência da República”.
Lula, Dilma, Geddel e Temer compartilharam interesses, nomeações, comícios, financiamentos eleitorais e propaganda de rádio e televisão, durante 4.356 dias de governo.
Durou até a segunda-feira 7 de dezembro do ano passado, quando Temer divulgou uma carta, porque, para ele “as palavras voam, os escritos permanece”. Criticou Dilma por confiná-lo no papel de “vice decorativo” e maltratar o seu partido: “Jamais eu ou o PMDB fomos chamados para discutir formulações econômicas ou políticas do país; éramos meros acessórios, secundários, subsidiários” — reclamou.
Quem quiser pode acreditar que essa correspondência nada teve a ver com um episódio ocorrido exatos cinco dias antes, na terça-feira 2 de dezembro, quando o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, recebeu a denúncia contra a presidente por crime de responsabilidade, as maquiagens contábeis de quase R$ 100 bilhões no orçamento federal.
O processo foi aberto ontem e, pela Constituição, pode durar até 180 dias. Prevê-se o desfecho para julho, depois da provável cassação do mandato do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Mudou o roteiro do espetáculo da política. Temer, agora presidente em exercício, começa a testar hoje os limites da maioria na Câmara e no Senado para construção do seu governo de “salvação nacional”. Tudo indica que, nesta etapa, vai dispor de uma coalizão confortável para “aprovar no Congresso o que for preciso" — como diz um documento do PMDB por ele revisado semana passada. O objetivo imediato é recuperar a vitalidade da economia.
Vai começar com uma decisão paradoxal, aumentando o déficit nas contas públicas de quase R$ 30 bilhões para R$ 96,7 bilhões. É parte do legado de Dilma. Se o Congresso não aprovar essa revisão da meta fiscal em 11 dias, ou seja, até 22 de maio, o Tesouro será obrigado a suspender os pagamentos a fornecedores, e até mesmo de salários, sujeitando o governo ao risco de crime de responsabilidade fiscal.
Por isso, na tarde de quarta-feira, Temer enviou o deputado do PSB cearense Danilo Forte para uma conversa com o presidente do Senado, Renan Calheiros, em pleno debate sobre o impeachment de Dilma. O pedido de autorização legislativa para aumentar o déficit está parado desde março. Outra decisão pendente é a permissão para o governo ter maior flexibilidade ao estabelecer prioridade de gastos com recursos orçamentários. É o que o técnicos chamam de desvinculação de receitas da União. As duas medidas devem ser aprovadas na próxima semana.
O aspecto central da troca de guarda no poder foi pontuado no discurso do presidente em exercício, ontem à tarde: “É no Congresso Nacional que estão representadas as opiniões da sociedade brasileira, portanto, temos que governar em conjunto”. Significa que a política voltou a dominar o Palácio do Planalto, em contraste com o que ocorreu nos últimos 1.597 dias com Dilma.
Relações com o Congresso são a especialidade de Temer. Ele acumula três mandatos na Presidência da Câmara, com razoável eficiência na remoção de entraves nas votações, em geral provocados pela avalanche de Medidas Provisórias expedidas pelo Executivo em caráter emergencial. Exemplo: a “urgentíssima” MP para construção de um trem-bala entre Rio e São Paulo foi aprovada há cinco anos. O trem-bala continua onde sempre esteve, na fantasia do papel.
Aos 75 anos, Temer já viu e viveu quase tudo na política — golpes, contragolpes, ditadura, eleições diretas e indiretas, e, desde ontem, dois impeachments presidenciais. Liberal e cuidadoso com palavras, supõe que a chance de êxito de sua passagem pelo Planalto depende da compreensão dos aliados sobre a diferença entre governança (“que vem pelo apoio político que o governo consegue dos partidos”) e governabilidade (“exige que haja uma aprovação popular do próprio governo”).
Já assegurou maioria legislativa, e até abriu uma linha de contato com a nova oposição, liderada pelo PT. Ela é operada por Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, em discretas gestões com o antigo chefe, o expresidente Lula, que acabou ministro sem nunca ter sido.
Quanto à aprovação do governo, precisará de sorte, tempo e de uma trégua entre os 22 ministros. Alguns sonham com candidaturas a cargos executivos e legislativos na eleição de 2018. Outros se preocupam com as novas delações nos inquéritos sobre corrupção em empresas estatais. Há um novo governo e uma nova oposição na praça. Continua imutável o imponderável, aquilo que no Congresso denominam, genericamente, como “Lava-Jato”.
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