- Valor Econômico
Muitos Lulas foram apresentados aos brasileiros ao longo de quase quatro décadas: o sindicalista raivoso e de barba desgrenhada, o candidato "paz e amor" com sorriso de publicidade, mas nenhum como aquele que surgiu ontem. Dilma falava em resistência, mas era o olhar de Lula, atrás da presidente recém-apeada do poder, que chamava atenção no comício para militantes do PT, à frente do Planalto. Abatido, Lula afiava os fios do bigode, com os olhos quase sem brilho. Parecia não acreditar na cena, buscando, com pensamento distante, explicações ou saídas.
O tom de Dilma não foi de despedida, mas será difícil escapar depois de uma votação que, para admitir o processo de impeachment no Senado, terminou com o placar de 55 a 22. Precisa que no julgamento final o número contrário seja inferior a 54. Não é impossível.
O sucesso de Michel Temer dependerá da relação com o Congresso e, principalmente, o cuidado em atender ao Senado. No ministério, que ainda montava às pressas no fim da tarde - quando fez um pronunciamento quase sem a presença de mulheres, em contraste com a cerimônia de Dilma pela manhã - o presidente interino mostrou que conseguiu equilibrar bem as forças que articulou intensamente para ocupar a Presidência.
A distribuição de pastas indica que agradou os principais aliados, de acordo com o tamanho das bancadas da Câmara. O grande escanteado - pelo menos em status de ministério - é Paulinho da Força e seu Solidariedade, cuja bancada é maior que a dos contemplados PPS (Defesa, com Raul Jungmann) e PV (Meio Ambiente, Sarney Filho).
Apesar de ser provavelmente um dos presidentes da República que menos votos diretos recebeu em sua vida política, Temer foi eleito três vezes ao comando da Câmara e chega ao poder como uma espécie de primeiro-ministro. O ministério é de um notável parlamentarismo. Em vez de técnicos com destaque em suas áreas - como pretendia ou ao menos vendeu para afastar a ideia de que armaria um balcão de negócios - Temer preferiu os políticos. Apenas dois dos 23 ministros não o são.
Onze partidos estão lá representados, alguns com líderes de bancadas, como Leonardo Picciani (PMDB), no Esporte; Fernando Coelho Filho (PSB), confirmado na última hora em Minas e Energia; e Sarney Filho. Ao todo, são dez deputados, três senadores, quatro ex-ministros, dois presidentes de partido - Marcos Pereira (PRB) e Gilberto Kassab (PSD) -, um secretário estadual e um ex-deputado federal, o ex-presidente do BC no governo Lula, Henrique Meirelles, agora na Fazenda.
Temer buscou uma representatividade parlamentar grande, a despeito do enxugamento do número de ministérios - o que de resto é jogo para plateia, pois as estruturas burocráticas são apenas incorporadas debaixo de guarda-chuva maior.
Ao atender os aliados, Temer destinou pastas importantes para o PSDB que ficou com três (entre as quais Cidades, Justiça e Relações Exteriores, para o sempre presidenciável José Serra); e duas para o PP (Agricultura e Saúde) e PSD (Fazenda e a turbinada Ciência, Tecnologia e Comunicação).
O PMDB, que tem o núcleo duro de ministros e amigos de Temer, entre eles Eliseu Padilha (Casa Civil), Romero Jucá (Planejamento) e Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo), ficou com o maior número, sete. Mas são pastas cujos orçamentos discricionários, livres para gastos, representam apenas 10,9% do total - a quarta maior fatia, depois do DEM (22,4%, com a Educação), PP (20%) e PSDB (12,2%), de acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp/FGV).
Para o pesquisador Luis Felipe da Graça, o PMDB não repete a tendência do PT em aglutinar ministérios fortes. "Não deixa de ser curioso o fato de que o governo do PMDB 'terceirizou' o comando das duas pastas programáticas e de política social mais clássicas, como Saúde e Educação", diz.
Se Temer, com o cargo máximo da República, conteve a voracidade habitual do PMDB sobre as pastas de maior orçamento, por outro lado, parece ter criado um desequilíbrio entre as duas instâncias em que tradicionalmente o partido se divide. O PMDB do Senado, de onde dependerá sua sobrevivência e é comandado pelo adversário interno, Renan Calheiros, ficou subrepresentado. É um risco. Pode ser o suficiente para dar novo brilho ao olhar de Lula.
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