- Valor Econômico
• Acordo rejeitado entra hibernação no banho-maria
Constatação realista de Ano Novo: o Brasil ficou com o mico do acordo ortográfico de 1990, firmado com membros da CPLP, a comunidade dos países de língua portuguesa que reúne nove nações: além de nós, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, mais outros dez países observadores associados. Formulada a partir de discussões iniciadas em 1989, concluída em 1990, antes mesmo da formação do grupo diplomático internacional, com entrada em vigor e obrigatoriedade sucessivamente adiadas, a reforma já teve data final irrevogável em 2008, depois 2009, novamente improrrogável em 2013, e, por fim, 2016. É desconhecido o estágio atual da reforma ortográfica, são muitas as instâncias que se deve percorrer no Itamaraty para obter uma informação sobre o assunto.
Os resistentes continuaram resistindo, a começar por Portugal, mas também Angola e Moçambique, e os que não viam razão para sua existência prosseguiram nas tentativas de cumpri-lo.
Cá estamos, deste lado da linha do Equador, tentando adivinhar onde colocar o hífen num momento em que a mesóclise volta à moda com força publicitária da linguagem presidencial.
O traço comum às regras dessa reforma é que não há regras. É um ajuntamento de exceções e, por isso, exige decoreba, não estudo. É preciso memorizar quais palavras têm acento, quais têm letra dobrada, e quais têm letra dobrada com acento. O trema caiu, mas quem se importa? Muitos já escreviam sem o trema, e já estão mais do que decoradas as palavras em que se deve pronunciar a letra u ou omiti-la, sem necessidade de procurar nos teclados dos meios digitais um sinal em desuso antes mesmo de ser extinto.
Na falta de regra, decorar uma lista de exceções é preciso, e é o que se faz na escola e no trabalho. O acento diferencial foi suprimido, mas só para algumas palavras. Para outras, como pôr e pôde, ainda existem. E por quê? Porque se não existirem, não se sabe se a frase está no presente ou no passado. Francamente!
O circunflexo desapareceu nas palavras terminadas em êem e no hiato oo, noves fora as exceções. O acento agudo, dá-lhe: desaparece dos ditongos abertos, mas é preciso ver caso a caso, como a palavra apóio. Desapareceu também em u e i após ditongos, mas em termos, há exceções a memorizar. O hífen é um caso à parte, e nem dá para decorar por falta de racionalidade mínima.
As estimativas eram de que a reforma havia alterado, ou proposto a alteração, da língua portuguesa em 0,8% dos vocábulos no Brasil e 1,3% em Portugal. Parece muito mais, tanto que em Portugal, ainda hoje, a reforma provoca perplexidade e riso, além de intencional desconhecimento.
Não se deve criticar o país irmão, a reforma é ruim.
No Brasil, a última data de obrigatoriedade de aplicação da reforma foi 1º de janeiro de 2016, marcada em decreto da ex-presidente Dilma, mas não se consegue saber, no governo brasileiro, se foi cumprida e se os demais países que homologaram o acordo já o colocaram de pé.
Na última reunião de chanceleres dos nove países da CPLP, em 2013, em Portugal, foram traçadas novas estratégias para implantação do acordo. Seminários foram organizados sobre "ritmo de execução", transformando as dificuldades para aplicação das exceções no fator principal da regra. Já houve plano estratégico votado em encontro da CPLP em Brasília, em encontro da CPLP em Portugal, e o hífen permanece uma incógnita. O tipo de avanço que se comemora na implantação do acordo ortográfico é pueril: criação do portal do professor e presença da língua portuguesa nas organizações internacionais. Já à época dessa constatação, oito países de língua portuguesa estavam em atraso com a anualidade a ser paga ao instituto da CPLP que deve executar o plano de ação.
Angola e Moçambique resistiam e resistem. Portugal critica. Há três anos, foi feito o diagnóstico sobre o que acontece: "Faz falta uma maior clarificação conjunta de prazos e de vontades". Entenderam? Só essa definição justificaria uma revisão integral do acordo.
O último adiamento teve o objetivo de sincronizar a implantação com Portugal, que estava atrasado. Não se sabe se algo aconteceu porque ninguém se interessa pelo assunto. Ainda é opcional o uso das regras e exceções? Em ambientes acadêmicos e culturais a reforma é uma realidade, é verdade que são quase obrigatórias as consultas a especialistas e aos dicionários sobre como se escreve cada palavra ao longo da elaboração de um texto. Mas o esforço é real, no Brasil.
Os três anos de adiamento (2013 a 2016) tinham também o objetivo de dar oportunidade ao aparecimento de novas propostas, principalmente para tornar racional e aplicável a mudança. Contudo, nada foi feito. Jornais e livros didáticos, além de documentos oficiais, já adotaram a nova ortografia, aos trancos, pois a irracionalidade não se reduz com o tempo.
A sociedade não se adaptou, os professores ainda sentem desconforto, consultam-se especialistas para dirimir as dúvidas até hoje, 27 anos depois de feita a reforma e firmado o acordo. São décadas de evolução do mundo, da escrita, do pensamento, e a ortografia, mesmo reformada, caducou.
A inércia da diplomacia permite que o assunto atravesse reveillons sem alteração do seu status.
Recado para quem?
Apenas a candidatura presidencial em 2018 não explica, a esta altura, a virulência do senador goiano Ronaldo Caiado contra o presidente Michel Temer, instando-o a sair do cargo para que haja nova eleição. E só a candidatura à reeleição em fevereiro próximo não justifica a virulência do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), contra o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, ao bradar obviedades, como jactar-se que ele não manda na Câmara. Em comum, são ambos do DEM, partido integrante da base aliada ao governo.
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