A controvérsia em torno da farinata promovida pelo prefeito João Doria (PSDB) reúne, em realidade, escassa substância. Trata-se de uma ideia defensável, mas apresentada como solução para uma carência inexistente —ou, no mínimo, mal definida.
Ninguém há de negar que diminuir o desperdício de comida constitui um propósito racional e elogiável. Segundo a prefeitura paulistana, só nas feiras livres da capital se jogam fora diariamente 160 toneladas de alimentos in natura.
Supermercados e indústrias também podem precisar descartar produtos em vias de perder a validade.
Tal é o alvo do processo de desidratação proposto pela Plataforma Sinergia, organização sem fins lucrativos ligada a grupos católicos da qual pouco se ouvira falar até que Doria gravasse vídeo elogiando um biscoito farináceo feito com o granulado.
O produto logo seria depreciado como "ração" por adversários do prefeito, assim como por nutricionistas e celebridades "gourmet" que se precipitaram nas críticas sem saber ao certo o que deploravam. A maior parcela de culpa por esse debate desinformado, contudo, cabe ao próprio prefeito.
Doria prometeu distribuir até o fim do mês a farinata —que nem começou a ser produzida em escala industrial— para famílias pobres. Em seguida, disse que iria incluí-la na merenda escolar, desistindo depois. Em seu açodamento, deixou patente que não tem plano concreto algum para o preparado.
Se tivesse, já estaria feito o percurso previsto na legislação municipal para que qualquer alimento entre no cardápio das escolas.
Isso depende da Coordenadoria de Alimentação Escolar, ligada à Secretaria de Educação, à qual cabe planejar e executar o abastecimento das cantinas, mas que aparentemente não foi consultada.
Tampouco foi prudente o alcaide aventurar-se no que se avizinha de propaganda religiosa ao distribuir diante de câmeras os biscoitos saídos de um jarro com adesivo de Nossa Senhora. Como quem oferece hóstias, declarou-os "abençoados". Na liturgia de um Estado leigo, caberia mais circunspecção.
Não há notícia de que a merenda das escolas paulistanas necessite de complementação. Não se sabe quantos pobres no município passam fome, como alega Doria, secundado pelo arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer.
Estancar o desperdício de alimentos? Claro, com política pública bem formulada. Não há por que apregoar, contudo, que a farinata vai erradicar a fome na capital.
Tal flagelo, se um dia for bem quantificado, deverá revelar-se muito localizado; mais comuns, decerto, são casos de alimentação inadequada, muitas vezes decorrentes de falta de informação sobre os nutrientes e suas fontes.
Problemas do gênero são atenuados hoje por programas de transferência de renda e pelos 22 restaurantes da rede estadual Bom Prato mantidos na cidade.
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