Ao explicar por que decidiu devolver à Procuradoria-Geral da República, sem homologação, um acordo de colaboração premiada eivado dos mesmos vícios que têm caracterizado o uso desse precioso instrumento de investigação por parte de alguns procuradores, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski foi muito além da mera crítica formalista. Em seu despacho, desabonou a crescente desenvoltura da Procuradoria-Geral ao celebrar esses acordos, que estabelecem a pena a ser cumprida e até mesmo a forma de cumprimento, algo que só cabe ao juiz fazer. Há muito se esperava, da parte do Supremo, alguma manifestação clara que lembrasse aos procuradores que nada pode justificar o desrespeito às leis, nem mesmo a ambição quimérica de acabar com a corrupção.
Finalmente essa manifestação veio – e dentro dos autos –, mas infelizmente não há garantia de que encontre, entre vários dos pares do ministro Lewandowski, o apoio necessário para que se torne referência em futuras decisões a respeito dos acordos de delação.
Convém lembrar, por exemplo, que o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, homologou sem questionamentos o inacreditável acordo de delação premiada fechado pela Procuradoria-Geral com Joesley Batista, por meio do qual o empresário ganharia imunidade total. E convém lembrar que, mesmo quando ficou claro que Joesley, para obter o acordo, omitiu informações e armou flagrantes de autoridades – supostamente em conluio com gente de dentro da Procuradoria-Geral –, o Supremo decidiu que um acordo de colaboração, uma vez homologado, não pode ser revisto. Segundo esse entendimento, admitir a revisão seria um risco para a segurança jurídica, pois o delator só aceitará falar se tiver a garantia de que nada poderá cancelar o acordo.
É graças a essa mentalidade que os delatores têm sido tratados não como criminosos confessos que são, mas como parte do time que está em campo para combater a corrupção. E alguns desses colaboradores usam marotamente essa noção a seu favor. Para o empresário Wesley Batista, por exemplo, a sua prisão e a de seu irmão Joesley – motivadas pelas suspeitas de que a dupla ganhou dinheiro no mercado financeiro graças à balbúrdia causada por sua delação – são um “imenso retrocesso daquilo que esperávamos ser um profundo processo de transformação do País”.
Portanto, estava mais do que na hora de recolocar as coisas em seus devidos lugares. A oportunidade para isso apareceu quando o ministro Lewandowski analisou o acordo de delação do publicitário Renato Pereira, marqueteiro do PMDB fluminense, que concordou em entregar a cúpula do partido à Procuradoria-Geral em troca de penas brandas para seus crimes de corrupção.
O ministro Lewandowski ordenou que fossem revistas justamente as cláusulas que estabelecem as penas para os crimes do marqueteiro. Foi concedido perdão judicial para todos os delitos, com exceção dos relacionados à campanha de Luiz Fernando Pezão ao governo do Rio, em 2014. Nesse caso, a pena fixada pela Procuradoria-Geral foi de quatro anos de reclusão – transformados em recolhimento domiciliar noturno no primeiro ano e em serviços comunitários no restante do tempo, inclusive com autorização de viagem para o exterior –, além de pagamento de multa de R$ 1,5 milhão.
O despacho do ministro Lewandowski desautorizando o acordo lembrou o óbvio: que “não é lícito às partes contratadas fixar, em substituição ao Poder Judiciário e de forma antecipada, a pena privativa de liberdade e o perdão de crimes ao colaborador”. O ministro salientou ainda que nem “sequer há processo judicial em andamento” e que a validação da esdrúxula pena fixada no acordo, não prevista no ordenamento jurídico, “corresponderia a permitir ao Ministério Público atuar como legislador”.
Em poucas palavras, o ministro do Supremo foi ao centro do problema causado pelas pretensões salvacionistas de parte do Ministério Público. Entre a lei e a vontade messiânica dos procuradores, o País deve ficar com a primeira.
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