- O Globo
STF deveria voltar a ser uma corte constitucional. Não deveria ter de julgar se solta goleiro condenado porque tribunal de origem não apreciou o caso de forma definitiva
Vivemos numa nação judicializada. O grande Miguel Reale dizia que o fórum era um imenso hospital, ou seja o que iria para ele era patologia da sociedade. Se inquilino e proprietário se acertam sobre o reajuste do aluguel, não haverá processo. Se dois sócios que decidem se separar chegam a um acordo, não há demanda.
No Brasil de hoje tudo é motivo de demanda. Todo mundo recorre de tudo. A expressão “vou recorrer” é uma interjeição, quase uma vírgula. Como somos originais em tudo, temos quatro graus de jurisdição, quando o normal na maioria dos países são dois, no máximo três.
O due process of law deriva do direito anglosaxão fixado na Magna Carta de 1215, através da qual os barões impuseram limites ao rei João Sem Terra, impedindo que pudessem ser processados ou perdessem seus bens sem o devido processo legal. Percebeu- se depois que a decisão individual de um juiz poderia estar errada, consolidando injustiça. Assim, seria necessário que uma instância acima, o Tribunal, pudesse mantê- la ou modificá- la. Surgiu o duplo grau de jurisdição ou o direito de recorrer, que exercermos com tanta volúpia.
Na nossa sistemática atual os processos se eternizam, causando insegurança e desconforto entre os cidadãos. Uma sociedade mais justa não é apenas aquela que gera crescimento e riqueza, assegura o emprego e distribui a renda, mas também a que permite que a Justiça possa harmonizar seus conflitos num tempo razoável.
O direito é resultado de uma longa luta da humanidade. Na Antiguidade, o credor de uma dívida não paga podia matar alguém da família do devedor como compensação. Na Idade Média, o testemunho de um nobre valia mais do que o de sete servos. No século XVI na Europa, os suplícios penais eram tão cruéis que quando a guilhotina começou a ser usada em 1792 foi considerada um método de execução mais humano por gerar uma morte mais instantânea...
No campo tributário, os processos que se arrastam não por anos, mas por décadas. O Estado em seu sentido amplo — União, estados e municípios — recorre até de decisões pacificadas que deveria respeitar. Depois empurra os pagamentos através de precatórios que atravessam gerações de contribuintes. Quando as decisões são contrárias ao Fisco com a modulação de seus efeitos em geral ex nunc ( só geram direitos para o futuro), elas acabam só devolvendo o que foi cobrado errado para frente, passando um apagador no passado.
No campo trabalhista, a ausência de cobrança de sucumbência gera uma total irresponsabilidade com os fatos. Como não há efeitos patrimoniais no caso de perda do processo, a regra é alegar tudo; depois o que sobrar é ganho. A recente reforma trabalhista já está sendo atacada por parte dos juízes. A coisa chegou a um tal ponto que o Tribunal Superior do Trabalho adotará o “princípio da transcendência” para reduzir o número de recursos. Ganha uma bolsa de estudos da Madame Natasha quem conseguir traduzir ou explicar ao cidadão comum o que seja isso.
Temos dois sistemas jurídicos no mundo ocidental. O romano- germânico ou Civil Law, cuja característica central seria a lógica e o bom senso fixadas em leis escritas. É o mais disseminado no mundo, e o nosso deriva dele. O outro, da Common Law, que se formou na Inglaterra, migrou para os Estados Unidos e Canadá, e cuja alma seria a experiência fixada nas decisões dos tribunais. No nosso atual não temos as virtudes de nenhum. As decisões não são mais tão consistentes, e nossa jurisprudência não tem força de precedente, valendo tanto quanto um jornal da véspera.
O Supremo Tribunal Federal deveria voltar a ser uma corte constitucional. Não deveria ter de julgar se solta ou prende um goleiro condenado porque o tribunal de origem não apreciou seu caso de forma definitiva. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha costuma decidir suas questões em menos de um ano. Tem a vantagem que sua sede não fica intencionalmente na capital e suas decisões são públicas, mas as sessões, não. A mistura de Brasília com televisão ao vivo tendo sido mortal para o bom senso.
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Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco
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