terça-feira, 26 de dezembro de 2017

José Antonio Segatto*: Uma crise anunciada

- O Estado de S.Paulo

Urge uma reforma para desburocratizar e desprivatizar as universidades públicas

Já há alguns anos constatamos, em artigo neste mesmo espaço (Publicização da universidade, 10/8/2014), o desencadeamento de uma grave crise nas universidades estaduais paulistas – USP, Unesp e Unicamp. Apontávamos também seus fatores originários, que, acumulados ao longo do tempo, não haviam sido enfrentados – e envolviam e envolvem não só problemas econômico-financeiros e do sistema administrativo, mas, sobretudo, a conformação dos poderes e dos métodos de gestão, impregnados de patrimonialismo e clientelismo, cartorialismo e corporativismo. Observávamos, ademais, ser necessária a adoção de medidas urgentes capazes de estancar o agravamento da crise em curso e, mais, que esta poderia resultar em eventual inadimplência, o que implicaria a paralisação de atividades e a impossibilidade de pagamento da folha de salários e de encargos.

Decorridos mais de três anos, poucas providências foram adotadas. A USP, cuja situação, naquele momento, era de maior gravidade – com a folha de pagamentos tendo chegado a 105% do orçamento –, viu-se compelida a despender quase todas as suas reservas e realizar um ajuste, ainda que parcial e fraco, sem ir ao cerne das questões. Dessa forma, mesmo com as reparações promovidas pela Reitoria, a sua situação econômico-financeira continua precária.

Concomitantemente, a situação da Unicamp e da Unesp era e é igualmente débil e inquietante. A primeira aprovou recentemente medidas tímidas e/ou paliativas, adiando a resolução dos problemas. Já a segunda não tomou providência alguma – mesmo diante do fato de sua folha de pagamentos ter-se aproximado dos 100% da receita – e não tem orçamento para pagar o 13.º salário dos servidores estatutários (professores e técnico-administrativos), bem como, provavelmente, para o total da massa salarial de 2018 – situação que pode vir a se agravar, dado que a administração central tem tido sua capacidade diretiva e sua credibilidade exauridas de maneira célere.

Ante a magnitude da crise, o establishment universitário (reitor e seu staff, gestores acadêmicos e administrativos, corporações e confrarias de interesses, etc.) tem-se postado de forma incerta, procurando simplesmente contornar suas origens e implicações. Tem-se limitado a reivindicar o aumento do porcentual da quota-parte do ICMS, que já é de 9,57%, equivalente a quase R$ 10 bilhões. Convenhamos, é um montante bastante expressivo, se considerarmos a realidade socioeconômica do País.

A situação, que hoje é grave, poderá tornar-se imponderável ou mesmo dramática nos próximos anos se medidas de reforma estrutural e de ajuste não forem realizadas. Guardadas as devidas diferenças e proporções, não é de todo inverossímil que aconteça em São Paulo algo parecido com o que sucede na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para evitar semelhante constrangimento as universidades paulistas terão de atacar problemas crônicos, cujas resoluções não podem mais ser postergadas – muito menos ser resolvidos com medidas efêmeras.

Dado que os problemas são numerosos, alguns devem ser eleitos como prioritários. Entre eles:

1) o da burocratização – as universidades se tornaram imensos aparatos burocráticos com centenas de órgãos (departamentos, conselhos, comissões, câmaras, diretorias, seções, divisões, etc.) e milhares de servidores técnico-administrativos, que chegam a perfazer o dobro ou o triplo de docentes/pesquisadores. Tais aparatos ganharam, muitas vezes, vida própria, sobrepondo-se às atividades de ensino, pesquisa e extensão, e mesmo as atividades dos docentes experimentaram cabal burocratização. Esse fato provocou distorções inconcebíveis, transformando atividades-meio em atividades-fim.

2) O da privatização – a cultura e as práticas patrimonialistas, também nas universidades públicas, foram convertidas em procedimentos ordinários; manifestam-se dos mais variados formas e meios e a ele se acoplaram o clientelismo e o corporativismo. Mediante a indiferenciação entre o público e o privado, a burocracia universitária apropria-se constantemente de bens e fundos públicos, autoatribuindo-se benefícios e privilégios dos mais variados tipos, ao legislar em causa própria – isso proporcionado por pacto (velado) entre o establishment universitário e o sindicalismo de resultados e/ou negócios, movido por um corporativismo insaciável e de conveniência pecuniária; ocorreu mesmo uma sindicalização de órgãos centrais da universidade. Tudo isso foi possibilitado, evidentemente, pela autonomia (didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial), compreendida pelos servidores (docentes e técnicos-administrativos) como ilimitada, e pela refutação desses mesmos funcionários de qualquer regulação externa.

Inegavelmente, existem outros problemas que poderiam ser expostos.

1) A falta de transparência e de responsabilização de agentes nas decisões e na execução orçamentária e financeira e no controle de aplicações e investimentos;

2) a ineficiência e mesmo o amadorismo na gestão universitária. Logo, a crise não se deve, simplesmente, ao mero desequilíbrio financeiro provocado por gestões perdulárias – o que, de fato, aconteceu –, mas deriva de questões estruturais.

Isto posto, e se nosso entendimento for adequado, urge a realização de uma ousada reforma acadêmico-administrativa, capaz de eliminar órgãos e procedimentos burocráticos e cartoriais, patrimoniais e corporativos – mudanças passíveis de desburocratizar e desprivatizar as universidades públicas, ou seja, de democratizá-las e publicizá-las. Entretanto, se esse estado de coisas não for revertido, elas estarão fadadas ao perecer gradual, perdendo o sentido de ser e existir. Ou, no mínimo, podem ficar à mercê de projetos e interesses impróprios, como o sugerido no relatório do Banco Mundial, há pouco divulgado com acentuado júbilo por certos órgãos da mídia.
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*Professor titular de sociologia da Unesp

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