- Valor Econômico (26/3/2018)
Prévia que Doria venceu mostra 'velha' política
A prévia do PSDB para definir o candidato do partido ao governo de São Paulo não despertou grande interesse. Os eleitores do partido não participaram do processo que definiu quem os representará na eleição de outubro. A decisão ficou nas mãos de uma minoria, em um processo deliberadamente obscuro.
João Doria é o caso mais bem sucedido da leva de empresários dispostos a trazer a ética empresarial para a política, contribuindo para sua renovação. Doria não se apresenta como um político, mas como trabalhador. Trabalhador compulsivo, que teria conquistado seu lugar ao sol com esforço e suor. Seria assim perfeito inverso dos políticos profissionais, sempre a postos para achar uma boquinha à custa do público.
Entretanto, a prévia que Doria disputou e venceu não poderia exemplificar melhor como funciona a "velha" política que diz combater. O episódio diz muito da distância entre discurso e prática política.
Nos debates preparatórios para a realização da consulta, o PSDB reconheceu desconhecer o número de votantes autorizados a participar da prévia. Informou que os registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) indicavam 308 mil filiados, mas que seus próprios dados indicavam apenas 110 mil. Por si, a divergência indica a improvisação e falta de garantias mínimas acerca da lisura do processo decisório intrapartido. Faltava clareza quanto à composição do corpo eleitoral, como quanto ao critério a ser usado para definir quem poderia participar da consulta e, mais importante, quanto a quem caberia tomar tais decisões no momento da votação. Quem faz a mesa e qualifica os eleitores, diz uma velha máxima que vem do Império, vence as eleições.
Como seria de se esperar, nas reuniões preparatórias para tratar da organização da consulta, estas questões vieram à baila. Segundo informou Pedro Venceslau em "O Estado de S. Paulo" (17/3/2018, pág. A9), o representante do senador José Aníbal, um dos pré-candidatos, defendeu que os filiados deveriam apresentar o título eleitoral para votar. O representante de Doria foi contra, alegando que "ninguém anda com título eleitoral." Forçado a se explicar, elaborou: "Essa possibilidade de fraude foi avaliada. Ela tem que ser contemplada como efeito colateral. É muito complicado exigir o título eleitoral."
Segundo a reportagem, decidiu-se que o título não seria exigido. O PSDB, contudo, não se pronunciou oficialmente a respeito. Ou seja, o partido não considerou que seria relevante informar potenciais eleitores como deveriam proceder.
O PSDB informou apenas os locais de votação, muitos deles improvisados, como o salão de beleza em que Alckmin votou. Foram 58 pontos disponibilizados na capital e 73 no interior. O desequilíbrio é patente e a consequência clara: impôs-se um alto custo de participação para a maioria dos militantes do interior, forçados a se deslocar para votar. Assim, os pré-candidatos foram levados a enfrentar questões que muitos acreditariam sepultadas com a Revolução de 1930: quem pagaria por esse deslocamento? O partido? O candidato?
O paralelismo com o voto de cabresto e o coronelismo é completo. Em consultas desse tipo, participam militantes mobilizados pelos candidatos. Em geral, vota quem ocupa cargos comissionados ou líderes de associações de bairro, cuja vida depende dos favores cavados aqui e ali junto ao governo.
Por dever de ofício e curiosidade intelectual, procurei os resultados da prévia desagregados por local de votação. A intenção era comparar o filiado ao eleitor, isto é, contrastar a distribuição de votos na prévia com a das eleições de 2014. Quão próximos socialmente seriam os eleitores do partido nesses dois momentos? Minha suposição era a de que não haveria correspondência entre os dois grupos, que o eleitor médio do PSDB não teria participado da prévia e que a maior parte dos votos não teria sido registrada nos locais de votação em que o PSDB tradicionalmente obtém votos, isto é, entre os mais educados e com maior renda. Com certeza, o filiado ao PSDB não é leitor de Caviar Lifestyle.
O teste, entretanto, não teve como ser feito. O partido não disponibiliza os dados necessários. Nenhum pesquisador que consultei os obteve. Solicitações a militantes e, mesmo, e-mails aos candidatos derrotados tampouco surtiu efeito.
Tudo que se sabe é o resultado proclamado. Doria obteve pouco menos de 12 mil votos. Como os demais candidatos não somaram 3 mil votos, o prefeito venceu com cerca de 80% dos votos válidos. Apenas para comparar: Vladimir Putin foi reeleito no mesmo domingo com 76% dos votos. Em outras palavras, não houve competição para valer na prévia do PSDB.
Doria diz trabalhar 24 horas por dia, 365 dias por ano. Desde que assumiu a prefeitura, não parou quieto um segundo. Viajou o Brasil inteiro mirando a cadeira presidencial. Caiu na real e foi forçado a rever seus planos, contentando-se com o prêmio de consolação. Mas, dizem as más línguas, a vitória nas prévias de domingo não deve ser creditada a seu suor. O trabalho duro teria ficado a cargo do vice-prefeito, cujo interesse na ascensão de Doria não precisa ser explicado. Em outros termos, o trabalhador compulsivo ganhou de bandeja a nomeação. Como se dizia no século 19, o prefeito é um adepto do oportunismo político.
Nem todos empresários contam com a ajudinha que vem catapultando Doria entre os tucanos. Nesse fim de semana, Flávio Rocha atravessou o Rubicão e declarou sua candidatura à Presidência. Foi relembrado, no entanto, que é membro do PR, partido a que se filiou em 1988, quando ainda se chamava PL e não era controlado pelo indefectível Valdemar Costa Neto. Na falta de um partido para chamar de seu, o empresário que defende os valores conservadores e da família, bateu nas portas do PRB. Assim se renova a política. Para o misto de empreendedor e político moderno, tudo entra na planilha como mero efeito colateral. Até a corrupção.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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