sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Fernando Abrucio*: Discurso patriótico de Bolsonaro segue caminho do sectarismo

- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

A defesa do patriotismo é uma das marcas do presidente Jair Bolsonaro em seu início de governo. Essa ideia pode parecer "démodé" num momento histórico marcado pela globalização. Mas o senso patriótico continua sendo essencial em dois sentidos: como elemento de agregação dos cidadãos em torno de valores e crenças comuns que dão sentido a uma nação, além de ser peça-chave na defesa dos interesses legítimos de cada país na ordem internacional.

A relevância desse sentimento, contudo, não significa que qualquer forma de atuação em seu nome seja correta e democrática. Se usado de forma errada, o patriotismo deixa de ser remédio e vira veneno. Fica, então, a questão: de que modo o comportamento patriota pode produzir efeitos positivos a um país? A resposta a essa pergunta pode ajudar a avaliar melhor o modo como Bolsonaro tem defendido sua atuação patriótica.

Em sua forma benigna, o patriotismo tem de responder a quatro objetivos. O primeiro diz respeito à defesa dos interesses nacionais frente aos demais países. O sucesso nesse quesito vincula-se à capacidade de obter o máximo de benefícios numa determinada ordem internacional, o que exige entender a dinâmica de poder em cada contexto.

No caso brasileiro, o entendimento de seu lugar político, econômico e cultural é fundamental, pois nossa história diplomática sempre foi bem-sucedida quando conseguimos atuar mais cooperando do que entrando em conflito. Patriotismo, aqui, é defender o Brasil sem aumentar nossos inimigos e ampliando os canais de interlocução.

Um segundo objetivo que deveria comandar uma liderança patriótica é saber separar o espaço público do espaço privado. A Pátria não é a extensão de uma família; ela é a representação impessoal da nação. Por isso, idealmente, deve ser comandada pelo princípio do mérito, com os governantes patriotas escolhendo pessoas que possam ser as melhores dentro de um campo político. Um estadista tem de ter uma equipe que vá além de seus próximos, amigos e correligionários.

Elenca-se como terceiro aspecto positivo do patriotismo a capacidade de unir uma nação. Valores patrióticos são bons quando unem as pessoas em torno de aspectos que congregam a coletividade. Isso vale para eventos esportivos, para festas populares e para a defesa de princípios cívicos. Mas o ponto principal aqui é evitar mobilizações e manifestações direcionadas ao isolamento de grupos relevantes de uma determinada sociedade.

Nesse sentido específico, cabe às lideranças políticas atuar contra o acirramento do conflito entre os compatriotas. Governar a pátria é procurar, na medida do possível, encontrar caminhos de juntar os diferentes.

O patriotismo contemporâneo, por fim, supõe sua convivência com os valores e instituições democráticas. Defender a pátria democraticamente envolve respeitar a separação dos Poderes e saber que a soberania popular está contida num conjunto de estruturas políticas, e não só no presidente.

Governantes que desrespeitam as regras do jogo, colocam em questão a legitimidade dos demais atores e, na pior das situações, adotam caminhos autoritários só pensam no fundo em si mesmos e no seu grupo, e não na nação. Isso é o inverso do patriotismo, embora muitas ditaduras tenham usado o discurso patriótico para se segurar no poder, como foi no salazarismo ou no regime militar brasileiro.

Tomando como base esses critérios, como entender o sentido do patriotismo defendido por Bolsonaro? Para início de conversa, constata-se que no plano internacional o ideal patriótico proposto é perigoso.

O governo atual tem arranjado conflitos desnecessários com organismos multilaterais e organizações não governamentais internacionais (ONGs), quando se pode ganhar muito mais com parcerias, como a articulação do Mercosul com a União Europeia. O Brasil é um "global player" no plano econômico e, por isso, não pode adotar posições minoritárias ou de confronto contra consensos internacionais.

Na América do Sul, principal lugar brasileiro no tabuleiro mundial, Bolsonaro tem cometido o mesmo erro que o lulismo, só que com o sinal ideológico contrário, apoiando candidatos em outras eleições nacionais.

Isso está ocorrendo em relação à disputa presidencial na Argentina, e mesmo que o nome escolhido pelo bolsonarismo seja o vencedor, a pretensa ação patriótica da política externa brasileira poderá ser lida por boa parte dos argentinos como um nacionalismo destemperado. O pior acontecerá se o resultado for o inverso, com a vitória de Cristina Kirchner. A lição que fica aqui é que não devemos nos imiscuir na definição dos governantes de outras nações.

As ações de política interna cada vez mais se articulam com as relações internacionais e, nesse ponto, o maior problema da era bolsonarista está na questão ambiental. A ideia de que os governantes e ONGs estrangeiros, quando não os próprios "brasileiros antipatriotas", estão jogando contra o Brasil, é um discurso pretensamente patriótico, porque seu resultado vai contra os interesses do país. Se o mundo acreditar que estamos piorando nossa gestão do meio ambiente, seremos penalizados em acordos comerciais ou na ação dos consumidores. O patriotismo de Bolsonaro não nos protegerá quando perdermos dinheiro.

A defesa da pátria não combina com nepotismo, a não ser em regimes ditatoriais unipessoais, como as monarquias do Oriente Médio, a Coreia do Norte e Cuba. Parece-me que não é esse o caminho que os brasileiros querem trilhar. Neste sentido, um dos maiores problemas do presidente Bolsonaro é a sua relação mal resolvida com a família, não só com os três filhos, mas com o conjunto de mais de uma centena de parentes que ganharam cargos públicos nos últimos anos.

Todo esse patrimonialismo poderia ter ficado no passado, nos postos do Legislativo. Mas Bolsonaro que dar o "filé mignon" ao filho Eduardo, com a embaixada brasileira nos Estados Unidos. Isso é desnecessário porque a visão política do bolsonarismo-raiz já domina a agenda do ministro das Relações Exteriores. Além disso, o zero-um e o zero-três tiveram votações expressivas e poderiam representar as posições políticas da família no Congresso sem precisar do uso do nepotismo. Será que não existiriam outras pessoas para defender a concepção patriótica bolsonarista nos Estados Unidos?

Dividir continuamente o país definitivamente não é uma boa forma de exercer o patriotismo. Todos somos brasileiros, não importa a religião, o gênero, a região de nascimento, muito menos o candidato presidencial que cada um escolheu. Bolsonaro foi eleito para governar para o conjunto do país, e se fizer isso será um grande patriota. Por essa razão, é preciso parar de provocar minorias, fazer piadas de mau gosto com nordestinos e pedir para que sejam aniquilados os adversários. O pior é que regularmente são feitos atos como vingança, contra a OAB, contra a imprensa e outros grupos, um tipo de ação que não unifica a nação e, portanto, é antipatriótica.

Alimentar a polarização, ademais, não resolverá os problemas brasileiros e nem fará o bolsonarismo crescer eleitoralmente. Esse tipo de comportamento político é um apequenamento de uma liderança que obteve uma enorme legitimidade eleitoral. Daí vem uma questão inevitável: que pátria Bolsonaro prometerá na próxima eleição ao povo brasileiro, uma em que só caiba aqueles que pensam como ele?

Fortalecer a democracia é uma das formas mais importantes de patriotismo no mundo contemporâneo. E a vida democrática, por definição, é pluralista. Ora, todo o discurso patriótico de Bolsonaro segue o caminho do sectarismo. O presidente diz que fala para a nação, mas exclui partes delas e pretende que seu grupo seja o espelho para os demais. Existem os "bons brasileiros" e os "patriotas", e esses são apenas os que concordam com o bolsonarismo. Há a "velha" e a "nova" política, e esta última é composta por aqueles políticos e amigos que fazem parte do governo e sua base parlamentar - embora na hora da votação da reforma da Previdência quem garantiu a vitória foi o velho centrão, motivado pela nova forma de distribuir emendas parlamentares.

Talvez o presidente só consiga ter referências de patriotismo advindas de formas autoritárias de poder, dado que seu modelo de boa governança é o regime militar. Mas numa democracia só pode haver atos patrióticos quando eles são conjugados no plural, pois o caminho de uma nação deve passar por muito diálogo e negociação. Um líder em prol do patriotismo deve conversar com todos e respeitá-los, mas parece que Bolsonaro fala apenas para si e para os próximos - e contra todos os outros. Assim, a pátria deixa de ser um grande sonho coletivo para se tornar somente um lugar destinado aos escolhidos pelo rei - ou pela família real.

Se o presidente quer mesmo recuperar o patriotismo como um valor orientador da ação dos brasileiros, ele precisa urgentemente incorporar e respeitar a todos em seu discurso, inclusive e sobretudo aqueles que hoje discordam do bolsonarismo. Do contrário, a fala de Bolsonaro é apenas uma "fake news", que vende a ideia de um Brasil para todos, mas que só vale mesmo para o seu grupo sectário.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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