Nada
indica que instituições suportariam mais quatro anos destrutivos com Trump na
Casa Branca
O
futuro sempre impulsionou o imaginário humano, e é bom que continue assim. Mas,
como aconselhou Antoine de Saint-Exupéry em “Cidadela”, não se trata de prevê-lo,
apenas de torná-lo possível. É mais ou menos disso que trata a eleição
presidencial desta terça-feira, 3 de novembro. Abundam superlativos para
sublinhar o peso dessa escolha em ano de crise nos EUA e no mundo. Mas seriam
desnecessários. Basta constatar que, muito além das diferenças entre Donald
Trump e Joe Biden, é o próprio funcionamento da democracia representativa
americana que está sendo votado.
Num
certo sentido, o mal maior já está feito. Há meses Trump implantou a semente da
invalidade das urnas caso venha a ser derrotado, tornando-se o primeiro
ocupante da Casa Branca a informar ao país que não aceitará um resultado saído
de “fraude eleitoral”. A semente vingou, injetou a desejada combatividade no
eleitorado trumpista, e corre o risco de contaminar a apuração. Não que as
acusações conspiratórias e intervenções judicialistas possam inverter
radicalmente os números, mas o resultado, exceto em caso de vitória acachapante
de Biden, poderá estacionar num limbo perigoso.
A
nação já tão esfarelada precisará de um baita esforço para se remendar.
Ken
Burns, o monumental documentarista da história dos EUA, situa a cisão nacional
de hoje como superável porque a norma da vida americana sempre foi a mudança,
não a stasi. Eleições
presidenciais durante períodos de crise acabam se tornando momentos de grande
potencial. “Elas podem desencadear realinhamentos maciços e reordenar o curso
do nosso país”, escreveu em ensaio recente para a CNN. O cineasta já retratou
os grandes momentos de embicada fundamental da nação em obras-primas como “A
Guerra Civil” e “A Guerra do Vietnã”. Mas é com lições extraídas de seu
mergulho na vida de Franklin D. Roosevelt que Burns prefere comparar os tempos
atuais.
Em
1928, o Republicano Herbert Hoover foi eleito presidente por uma maioria
retumbante. Contudo revelou-se incapaz de gerenciar a Grande Depressão de 29, que
aniquilou a vida social e econômica do trabalhador americano. Foi derrotado na
eleição seguinte pelo democrata Roosevelt, que oferecia uma reviravolta radical
ao país: em lugar da cartilha de Hoover, de apelo ao esforço individual de cada
cidadão, F.D.R. propunha uma intervenção maciça do governo, com o Estado e a
sociedade se reerguendo em conjunto. Roosevelt falou claro, conseguiu se fazer
ouvir e redefiniu para sempre o papel de um governo federal numa sociedade
democrática. Burns acredita que a atual crise americana não se encerrará com a
eleição, devendo adentrar o ano de 2021. “Mas, quando encontrarmos nosso
caminho, espero podermos ter uma visão mais clara de quem queremos ser”,
conclui .
Mais
de um século e meio atrás, Walt Whitman já vaticinava que, se algum dia a
“América” caísse em desgraça e ruína, a derrota viria de seu próprio âmago, não
de fora. Para o poeta, a longevidade da democracia no Novo Mundo, e a aceitação
do que a humanidade tem em comum, dependia de cidadãos bem informados, dando o
melhor de si, com ênfase no papel do voto.
No
entender de alguns republicanos que elegeram Donald Trump em 2016 e hoje
observam, em pânico, a mutação do Grand Old Party em antro de cultistas
lunáticos, é hora de votar em quem se comporta como adulto, não como
delinquente. Max Boot é republicano desde criancinha. Foi assessor de três
candidatos à Casa Branca e hoje publica uma coluna ultraconservadora no “Washington
Post”. Dias atrás, citou uma sombria frase do envolvimento americano no Vietnã
—“Tivemos de destruir o vilarejo
para poder salvá-lo” —
como receita para o futuro do Partido Republicano. Quanto mais tempo Trump
permanecer no cargo, quanto mais danos causar ao país, mais lealdade obterá de
seus seguidores, descobriu Boot tardiamente. Ele agora prefere votar no
democrata Biden a ser corresponsável por mais quatro anos de “um sociopata que
necessita mais da adoração de massas que da aceitação de pessoas normais”.
Normalmente
partidos políticos mudam o curso de sua trajetória quando perdem uma eleição
importante. Mas, devido ao tortuoso sistema eleitoral dos Estados Unidos — que,
como se sabe, não é direto —, os Republicanos podem continuar a vencer e
exercer o poder sem ter construído sequer um simulacro de maioria nacional.
Basta analisar os resultados dos últimos 20 anos, período em que venceram o
voto popular uma única vez e, mesmo assim, tiveram o comando da nação em mãos
por 12 anos. Embora esgarçadas, as instituições democráticas do país vinham se
aguentando. Nada indica que suportariam mais quatro anos erráticos e
destrutivos com Donald Trump na Casa Branca. A formação de uma maioria
multirracial mobilizada em torno de Joe Biden parece apontar para um futuro
mais inclusivo, mais real, e mais parecido com o que Democratas (e democratas)
americanos acreditam ser como nação.
Levará tempo. Talvez até mais de uma geração para reencontrar a confiança necessária à evolução da sociedade americana como um todo. De volta a Saint-Exupéry: está nas mãos do eleitor de 2020 tornar possível o futuro — não só dos Estados Unidos.
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