No Dia
de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são
como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado
Uma
das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos
160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo
presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social
adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A
aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as
consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele,
desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado
pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$
300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões
de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos
quais R$ 213 bilhões com o auxílio.
Acontece
que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo
imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está
chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de
desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a
redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do
agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade
de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes
centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República
apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no
Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à
reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se
distanciar de ambos.
Nosso
presidente da República é um personagem complexo da política brasileira —
embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos
paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da
população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma
realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das
pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19,
que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o
rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de
velórios e os caixões fechados.
Entretanto,
Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes
queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de
perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser
considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se
manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no
Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são
como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.
O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.
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