Problemas
não caminham sozinhos nem são subservientes ao calendário
Nos
últimos acordes deste ano atípico o senso comum lança em toda parte um sonoro
“já vai tarde” a 2020, tentando semear a esperança de que em 2021 será tudo
melhor. Que será, será, mas não necessariamente muito diferente, pois problemas
não caminham sozinhos nem são subservientes ao calendário. Continuam aí, embora
o mundo já receba do esforço universal tão inédito quanto espetacular dos
cientistas instrumentos para enfrentar o maior deles a golpes de vacinas.
Para
tudo, porém, há um contraponto. A pandemia tirou as coisas dos eixos tais como
vinham girando até que um morcego do outro lado do planeta pusesse a humanidade
à prova, entregue ao desafio de encontrar novos ou reencontrar antigos pontos
de equilíbrio. A disfunção é universal e cada país ainda tem adversidades
específicas — decorrentes voluntária e involuntariamente da ofensiva do vírus —
para administrar.
Os
Estados Unidos, por exemplo, livraram-se de uma dessas circunstâncias que deram
um trabalho enorme: um presidente criador de casos, cujos métodos contribuíram
ao longo do ano para o desvio do combate à crise sanitária. Por aqui, junto com
cargas pesadas a carregar e sapos robustos para engolir, temos esse tipo de
governante só que ainda com dois anos de mandato pela frente sem dar sinal de
que pretenda parar de criar caso com tudo e todos que lhe contrariem a ilusão
de poder absoluto.
Digo ilusão porque, objetiva, concreta e pontualmente, o presidente Jair Bolsonaro perdeu e continua perdendo todas as tentativas de dar contornos reais ao seu devaneio de mandar porque pode e daí fazer todos obedecer por ser, na visão dele, providos de juízo. Tenta compensar no grito as perdas que acumula no Judiciário, no Legislativo, na comunidade científica, entre governadores, na sociedade organizada (e na desorganizada também), na imprensa, nos desmentidos que lhe impõem os fatos.
Muito
embora a banda da democracia não toque ao ritmo de marcha militar como pensa
Bolsonaro, ele ganhou algumas paradas ao custo de enormes prejuízos ao país,
levando-nos a perder lugar de destaque e respeito mundiais na cultura, no trato
do meio ambiente, na diplomacia e, mais recente e de modo especialmente danoso,
na política de imunização construída em bases exitosas nas últimas quatro
décadas.
Um
legado que vai muito além de 2021, cuja marca foi a da ineficiência. O que
esperar então do amanhã mais imediato? O presidente continuará nessa toada de
cavar chances para celebrar aqui e ali “mais uma que o Bolsonaro ganhou”, pouco
se importando com o destino do coletivo. E o Brasil social e institucionalmente
do outro lado seguirá empreendendo um esforço enorme para reagir e resistir às
investidas nem vou dizer contra a democracia por se tratar de uma ação
inexequível, mas contra a normalidade da vida e da relação do governante com
seus governados.
É
toda hora uma declaração estapafúrdia ou uma ação descolada da realidade,
coisas que exigem a mobilização de uma energia brutal dedicada ao acessório
que, no entanto, se torna essencial porque não se pode deixar passar certas
atitudes sob o risco de lá na frente o preço a pagar ficar muito mais alto.
Esse
passivo particularmente brasileiro é que vamos carregar neste momento em que o
combate da pandemia já não é uma hipótese, mas uma situação concreta na qual
seria indispensável contar com uma governança concentrada na emergência. O
plano anunciado é difuso. Os 20 bilhões de reais de aporte anunciados não
ajudam quando se tem um presidente que põe dinheiro, mas não impõe moral e
desqualifica a vacinação e se mostra incapaz de imunizar a população, a coisa
tende a não funcionar.
Problema
ainda agravado por dificuldades como a queda de renda dos mais pobres, a
incerteza sobre o andamento dos trabalhos no Congresso para o que é fundamental
na economia, a redução de leitos disponíveis seja pelo receio de se retomarem
os hospitais de campanha devido às falcatruas ocorridas e/ou da necessidade de
atendimento de doenças cuja demanda ficou reprimida pela prioridade dada à
Covid.
Isso
sem falar nos efeitos crescentes da tensão pré-eleitoral em cujas águas o
presidente candidato à reeleição navega em clima de tormenta, donde a tendência
de seus pretensos oponentes será a do jogo pesado, tendo a vacina como centro.
Mas essa é outra história. Por ora, fica o desejo: que a realidade supere as
más expectativas e tudo corra bem no ano que vem.
Publicado
em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719
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