Na
hora do aperto, o abastecimento de liquidez, a seiva dos mercados financeiros,
só encontra provimento nos bancos centrais
Gavekal
Dragonomics informa: os reguladores chineses estão às voltas com as criaturas
da finança digital, as chamadas fintechs. Desde meados dos anos 2000, as
fintechs e demais empresas de tecnologia passaram a ocupar um espaço
considerável nas transações financeiras do mercado chinês.
O
Banco Popular da China e a Comissão Reguladora de Bancos e Seguros da China
(CBIRC) buscam uma abordagem regulatória mais abrangente, em vez de
simplesmente alinhavar uma regulação específica. A proposta de medidas sobre as
microfinanças online publicadas em 3 de novembro está em elaboração desde
setembro de 2019. Ela estabelece regras rígidas sobre alavancagem, exigindo que
as empresas de microfinanças mantenham sua taxa de alavancagem abaixo de 600%,
e retenham pelo menos 30% dos empréstimos por elas originados em seus livros.
Essas
normas regulatórias são bastante semelhantes às dos bancos. Em julho deste ano,
o CBIRC também emitiu novas regulamentações para o negócio de crédito online
dos bancos, enfatizando que os bancos não podem terceirizar suas
responsabilidades na gestão de riscos. O efeito combinado é acabar com a
expansão não regulamentada das empresas de microfinanças on-line, e garantir
que elas mantenham reservas de capital suficientes para arcar com o risco de
suas decisões de empréstimo.
Para os reguladores, é simplesmente inaceitável que grandes empresas financeiras - essa é a natureza verdadeira das empresas de tecnologia - operem fora dos marcos da regulação financeira. No final de outubro, diz a Gavekal, a Comissão de Estabilidade Financeira e Desenvolvimento, órgão coordenador de alto nível, reafirmou que “é necessário incentivar a inovação e promover o empreendedorismo, mas também é necessário fortalecer a regulação e trazer atividades financeiras totalmente sob a supervisão da lei para efetivamente prevenir riscos".
No
início de novembro, o PBOC publicou seu anual Relatório de Estabilidade
Financeira, que pela primeira vez esboçou um marco regulatório para a
tecnologia financeira. Os regulamentos e normas existentes devem definir uma
linha vermelha que a inovação não pode cruzar, disse o PBOC, embora os
reguladores “reservem espaço” para a inovação por instituições financeiras
licenciadas.
As
autoridades chinesas entendem que as empresas de tecnologia devem jogar pelo
mesmo conjunto de regras que disciplinam os bancos comerciais e demais empresas
financeiras tradicionais. “Grandes empresas de tecnologia já se tornaram
importantes para o funcionamento do sistema financeiro, e serão reguladas da
mesma forma”. Uma vez estabelecidos os princípios gerais, será promulgado a
regulação mais detalhada das novas formas de atividade financeira.
“Provavelmente não vai demorar muito até que a gestão da riqueza on-line se torne
sujeita a uma regulação mais abrangente, assim como, diga-se, toda a gestão da
riqueza está sendo padronizada”.
“Toda
a gestão da riqueza está sendo padronizada”. Uma frase que revela mais que sua
aparente banalidade. Sinto incomodar os crentes dos mercados eficientes, os que
pretendem confinar as transações financeiras no arcabouço teórico das feiras
livres. Os sistemas monetários financeiros são muito mais cruciais para o
funcionamento das economias capitalistas. Para o bem ou para o mal, são organismos
de coordenação (planejamento?) dessas economias, irremediavelmente monetárias.
Por isso, os sistemas monetários são inexoravelmente centralizados, a despeito
da multiplicação de agências e agentes incumbidos da gestão de ativos privados
heterogêneos, sim heterogêneos em sua semelhança monetária.
Nos
tempos de bonança, a coisa anda às maravilhas e o universo da acumulação e
precificação da riqueza monetário-financeira estimula a criativa multiplicação
e dispersão dos ativos. Quando o troço aperta emerge a dura feição
centralizadora.
A
convivência entre a dimensão privada e proprietária da riqueza monetária e a
força centralizadora dos gestores públicos da moeda - essa instituição
irremediavelmente social - é uma liça entre contrários inexoravelmente interdependentes
em sua xifopagia. A crise de 2008/2009 e o desmantelamento dos circuitos
monetários do coronavirus escancararam o desespero da dimensão privada em
colapso e o clamor angustiado pelo socorro público.
O
Relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) preparado para apoiar a última
reunião do G-20 faz uma incursão nas virtudes e contrariedades dos mercados de
riqueza monetária. “As intervenções decisivas dos grandes bancos centrais
ajudaram a preservar a estabilidade. As más condições financeiras globais
refluíram e os rendimentos dos títulos soberanos e corporativos caíram de suas
altas no início da crise... As elevadas valorizações do mercado ao lado de uma
recuperação que é apenas parcial resultaram em uma desconexão entre os mercados
financeiros e a economia real, refletindo em parte o otimismo dos investidores
sobre o apoio público contínuo e uma rápida recuperação.
Embora
o apoio à política tenha ajudado a restaurar a calma, vulnerabilidades estão se
construindo no setor financeiro, à medida que os buffers de capital dos bancos
e das instituições financeiras não bancárias são corroídos”.
Em
artigo recente no Financial Times, o conselheiro do grupo Allianz e professor
de Columbia, Mohamed El Erian, afirmou que Donald Trump acreditava, e declarou
publicamente repetidas vezes, que o mercado de ações validou suas políticas.
Quanto mais o mercado subia, maior a afirmação de sua agenda “Make America
Great Again”. A abordagem do presidente era música para os ouvidos dos
investidores. Trump reforçou a crença já consolidada há tempos em um “Fed put”
- abreviação para a visão de que o Fed sempre vai intervir para resgatar os
mercados - a tal ponto que as expectativas dos investidores ficaram ancoradas
nas areias do otimismo.
Na
hora do aperto, o abastecimento de liquidez, a seiva dos mercados financeiros,
só encontra provimento nos bancos centrais. O comportamento dos sistemas
monetário-financeiros nos ciclos de negócios pode ser comparado a uma sinfonia
de Beethoven que alterna movimentos de exaltação e tristeza. Nessa toada, ora
os acordes são eufóricos, ora melancólicos. Entre as obras primas de Ludwig
recomendo a abertura da Quinta Sinfonia com seus acordes bombásticos:
Tan-tan-tan-tam. “O Destino Bate à Porta”. Isso, sem desconsiderar o quarto
movimento da Nona, o Hino à Alegria.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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