Precisamos
abrir espaço para a ciência, o bom governo e a solidariedade social
Em
2020, o futuro resolveu nos pregar uma peça e fazer uma visita inesperada e
perturbadora, revelando sua face distópica e arbitrária, mas também destacando
uma série de virtudes que serão indispensáveis para sobreviver em um mundo cada
vez mais instável, inseguro e complexo.
Quem
imaginaria, às vésperas das festas de final de ano de 2019, que mais de 1,6 milhão de pessoas perderiam a vida e as
rotinas de todos os demais seriam profundamente afetadas pela pandemia? A
angústia do isolamento, para os que tiveram recursos e perseverança para se
protegerem, e o medo e a contaminação, para aqueles que foram obrigados a
permanecer nas trincheiras, foram incorporados à vida de cada um. Exceto, é
claro, para aqueles que vivem em delirante negação, ou que veem a pandemia como
oportunidade para perseguir objetivos inomináveis.
O encontro da pandemia com a onda de populismo não poderia ter sido mais trágico. Como era de se esperar, onde prevaleceu a polarização, o obscurantismo, o negacionismo e a desconfiança, como no Brasil, México, Estados Unidos ou na Índia o vírus se propagou de forma mais ampla e matou mais pessoas. Dada a natureza amoral e oportunista do vírus, o impacto da pandemia sobre a população tem sido uma consequência, sobretudo, da capacidade e dos esforços coletivos para a prevenção e o tratamento da doença.
Ao
minimizar os riscos da pandemia, conspirar contra as medidas preventivas de
afastamento social, promover aglomerações, desarticular políticas de saúde e se
contrapor, de múltiplas formas, à vacinação, governantes populistas atraíram
para si a responsabilidade política e jurídica por milhares de mortes que
poderiam ter sido evitadas, como alertou José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e
presidente da Comissão Arns de Direitos Humanos, em recente entrevista a
esta Folha.
Em
sentido oposto, este estranho ano também colocou em evidência uma série de
virtudes que se demonstraram indispensáveis no enfrentamento da atual crise e
que certamente serão essenciais para lidar com as crises climáticas, sanitárias
ou mesmo sociais que se armam no horizonte.
Produzir
e levar a ciência à sério, não se deixando embalar pela ideologia ou
resignação, tem sido uma virtude essencial na luta contra a pandemia. A produção, em tempo recorde, da vacina, deixa claro que
sem a ciência não há como retomarmos a normalidade. Sem os meios digitais e o
emprego sistêmico de tecnologias de comunicação, ficaríamos paralisados. Sem
logística, morreríamos na praia.
A
virtude do bom governo, pautado em critérios racionais, éticos e democráticos,
capaz de promover a coordenação de esforços e cooperação, inclusive
internacional, em favor do bem comum, também tem se demonstrado essencial.
Basta olhar para Nova Zelândia, Canadá ou Alemanha.
Por
fim, sem a virtude da solidariedade, exercitada em sua dimensão humana
sobretudo por profissionais de saúde, ou coletivamente pelos sistemas de proteção
social e de bem-estar, a catástrofe seria ainda maior. Muitos outros segmentos
também envidaram esforços para acolher os mais vulneráveis e manter a própria
economia em funcionamento, mitigando os efeitos nefastos de atitudes
irresponsáveis, políticas e individuais, que atentam contra a vida.
O
grande desafio de 2021 é colocar limites à vaga populista, abrindo espaço para
que a ciência, o bom governo e a solidariedade social nos retirem dessa
enrascada e nos fortaleçam para enfrentar as novas borrascas que certamente
teremos pela frente.
Às
generosas leitoras e leitores, desejo um bom ano.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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